"Você não escreveu sobre suas impressões de Madri", cobrou-me uma amiga. É verdade. Aí lembrei que tinha achado esquisito quando um conhecido, habitué de viagens exóticas, comentou ter como regra jamais tirar fotografias, e nem mesmo fazer anotações ― e olha que ele escreve bem. Agora, eu me identificava. Além de não escrever sobre, também não imprimi as fotos da Espanha.
Já venho postergando a impressão de fotografias há mais de ano. Sempre acho muito caro, para algo tão disponível no onipresente computador. Aliás, as tais fotos, desta última viagem, mostrei para algumas pessoas no meu netbook-de-um-quilo. Mas fiquei em dúvida com relação ao efeito de abri-lo no restaurante, interrompendo a conversa do grupo: talvez eu estivesse reproduzindo demais a cena de sacar da bolsa aqueles álbuns de fotos pesadões, que assustavam mas pelo menos podiam ser folheados displicentemente pelos amigos. Pior, pode ter ficado parecido com as antigas sessões de slides (nossa, põe antiga nisso).
Mas voltando às impressões de fatos e fotos, nestes tempos em que imperam a concisão e a rapidez, uma frase de impacto tornou-se indispensável para fisgar a atenção da audiência ― o que vale também para narrativas de viagem. A rapidez, confesso, não me atrai tanto como no passado, mas a busca da concisão é sempre um bom desafio. Pois, mais de uma vez, flagrei-me pensando sobre a minha impressão da Espanha. Veja bem, não "as impressões", mas "a impressão".
Claro que isso é pretensioso. Mas, quando pisamos pela primeira vez em uma grande cidade europeia, não há meio termo: ou você dá sorte de tropeçar em uma experiência inusitada/emblemática ou cai no lugar comum de uma sessão de slides. A propósito disso, lembro da decepção da minha amiga quando, no último dia da viagem, encontrou uma preciosa lista de "dicas" de Madri esquecida no fundo da mala. Teríamos perdido a oportunidade de conhecer algo sensacional e escondido? Nada disso. A lista, feita com esmero por alguém que acabara de voltar da Espanha, reproduzia ipsis literis os lugares obrigatórios dos guias turísticos.
Aqui é hora de admitir que, sim, tínhamos feito os mesmos programas. De todos os turistas. Mesmo assim, pensei, eu poderia acrescentar o meu olhar para tornar interessante um relato de viagem. Poderia, por exemplo, escrever sobre como fiquei impressionada com o Museu do Prado; sobre a sensação de descobrir que obscuros recantos da alma humana eram acessados somente por artistas do passado; sobre pensar em onde escondemos hoje sentimentos assim tão pungentes; e se a desculpa da rapidez e da necessidade de concisão nos ajudaria a camuflar ou esquecer a nossa sombria natureza em comum com esses antepassados, permitindo-nos apenas alguma emoção diante de uma pintura imponente em um museu.
Mesmo assim, eu corria o risco de parecer óbvia, até pretensiosa, querendo falar de arte, leiga que sou. Além do que, estaria omitindo outras impressões ― dessas que impregnam os sentidos e ficam incutidas na memória ― menos exuberantes. Porque nossos sentidos (visão, audição, olfato, gosto e tato) não querem saber de motivações intelectuais, eles se atêm a banalidades. A verdade é que a primeira palavra que me vem à mente hoje, quando penso em Madri, é: poeira. Comia poeira sempre que saía do meu hotel bem localizado, no Centro, onde a prefeitura promovia imensas obras sem tapumes, com operários quase esbarrando nos pedestres, e o clima seco só tornava a experiência mais penosa.
Foi assim que comparei Madri com a Berlim que conheci como um grande canteiro de obras, poucos anos após a derrubada do Muro. Mas não me recordava de ter sofrido tanto com aquele transtorno, talvez porque o governo local fazia dele um acontecimento, com direito a passeios de barco para apreciar os gigantescos guindastes em ação, mostrando os projetos em andamento, e dessa forma os turistas se sentiam parte da história de reconstrução da "nova" capital alemã.
Novamente meus sentidos cismaram de encontrar semelhança entre Madri e Berlim, tão diferentes na essência, quando ia atravessar uma avenida, e fui atraída por pios de pássaros que vinham do sinal de pedestres, programado para alertar deficientes visuais. Na Berlim pós-Muro, o "homenzinho do semáforo" ― ora verde, ora vermelho, mas sempre de chapéu ― tornava-se então cult, e era adotado na sinalização da parte ocidental, além de enfeitar todo tipo de souvenir. Pelo menos na época, tratava-se de um símbolo da integração, que guardei com encanto em algum lugar da memória, aguçada novamente pelos pios de Madri.
Os barulhos e os cheiros de uma cidade inquietam os visitantes, talvez porque jamais farão parte de um álbum de recordações. Em Madri, era impossível ignorar o forte odor de cigarro nas ruas de pedestres totalmente vazias, à noite, com o comércio já fechado. De Bangcoc, jamais vou esquecer o cheiro nauseante de gordura e temperos vindos de barraquinhas que fritavam quitutes, devidamente listados como temerosos em guias turísticos.
Tudo fica mais fácil (para o viajante atrás de certezas) quando se consegue identificar a origem dos cheiros e barulhos. Em Budapeste, porém, passei quatro dias intrigada com as sirenes ― de ambulâncias e carros de polícia, creio, já que é impossível ler os letreiros em húngaro. Pelo menos para a sensibilidade de meus ouvidos, havia sempre uma viatura apressada pelas ruas. A minha curiosidade, no entanto, não parecia sensibilizar mais ninguém: era como se as sirenes fossem casuais para todos; repetiam-se apenas em minha mente paranoica. Mistério.
Mas nada se compara ao registro deixado por uma experiência extrema com um clima diferente do nosso. Há poucos dias, numa Ipanema surpreendida por uma onda de calor em plena primavera, pude observar gringos saindo da praia com a marca indelével de sua viagem. Com certeza, jamais esquecerão o dia em que pegaram uma queimadura daquelas, na cidade maravilhosa e escaldante, e mesmo assim contarão essa história com saudades, depois que a pele estiver branquinha novamente. Não será diferente dos brasileiros que costumam se gabar de quando tiveram os sapatos enlameados pela neve imprevista, sem disfarçar o prazer de ainda ter uma sensação do passado tão vívida na memória, e poder usufruir dela com os pés quentinhos, plantados em seu país tropical.
Quem sabe, em vez de ignorância, não é o desejo de guardar uma forte impressão que leva os viajantes a desafiarem o clima de um lugar desconhecido. Em Londres, por exemplo, apesar das manjadas histórias sobre suas hostis condições climáticas, consegui amealhar uma recordação assim em um início de outono. O "mico", não por acaso, envolveu um cartão postal: sem táxi por perto, tive que atravessar a London Bridge depois de um jantar, para pegar o metrô. Claro que eu estava com uma roupa inadequada para a chuva que começaria a me açoitar logo no começo da ponte. Quando finalmente sentei no vagão quentinho, a surpresa: a roupa encharcada tinha secado em questão de minutos. Inesquecível.
Querida Marta, adorei o seu texto. Eu também detesto esta "rapidez" do tempo capitalista de não ter tempo pra nada! É algo diabólico! Penso que o seu texto/depoimento em muito contribui para que possamos escrever de uma forma coletiva a última proposta para o próximo milênio de Italo Calvino; desafortunadamente, a morte do referido autor nos privou de conhecer "Concisão" (sexta proposta) do brilhante poeta/escritor/narrador cubano-italiano. Abs do Sílvio. Campinas, é quase verão de 2009.