COLUNAS
Sexta-feira,
18/12/2009
Agendas, papéis soltos e o dia-a-dia
Ana Elisa Ribeiro
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Última viagem do ano. São Paulo, com direito a hospedagem na casa do tio querido. Judeus pelas ruas, meninos de quipá (este chapeuzinho não está no Aurélio!), padarias imensas, trânsito insuportável. Poucas vezes tive a chance (dispensável) de experimentar esse famoso tráfego. Duas horas no carro do André, mais uma e meia no carro da Carla, sem contar as horas dentro dos táxis. E nem sempre com motoristas amigáveis. São Paulo vista de baixo. Minhocão, cracolândia e a USP, lá do outro lado. A USP é bonita e a chuva exacerba os verdes plantados lá. Para completar o cenário, uma feira de livros que me fez trazer uma mala a mais.
Última viagem do ano? Será? Parece que o finalzinho do calendário ainda me reserva um pulinho pelo interior do estado do Rio de Janeiro. Não é bem uma viagem a trabalho, mas não deixa de haver alguma obrigação aí. Meu filho já conta os dias. Férias com vovó. Dura pouco, mas criança tem umas eternidades na cabeça. Custa a chegar. Quando chega, custa a passar. Ao menos isso. E depois que passa, vira álbum de retratos, que ele vê o ano inteiro, com saudades nos olhos. Adultos deveriam cultivar essas saudadezinhas.
Viagem a trabalho. Parece que a gente vê os lugares, mas não vê. Conhecemos quase todas as universidades do país, mas elas não são exemplo e nem têm representatividade. A USP é bonita, até aconchegante. O engarrafamento chega lá dentro, especialmente na saída. A Unicamp é espalhada. Todas as vezes que visitei Campinas vi uma vegetação ressecada. Não dei sorte. Nem dei sorte quando fui a Brasília. A PUC Minas é um dos lugares mais bonitos que conheço, assim como a Universidade Federal de Viçosa, no interior de Minas.
Onde irei no ano que vem? Na viagem a São Paulo resolvi procurar minha agenda de papel para 2010. Sem essa de dispositivos digitais para guardar meus compromissos. Gosto mesmo é da agendinha em A5, de preferência com elástico, para segurar a papeladinha que se junta ao longo do ano. O que há de papelzinho solto na agenda de 2009? Um momento que vou conferir: boa surpresa! Trinta reais perdidos, guardados por algum motivo. Deixei de pagar alguém? Três ou quatro cartões de visita, as passagens de Campina Grande (PB), de Recife, comprovantes bancários de depósitos com envelopes, comprovante de entrega de imposto de renda, um guia de Niterói, uma guia de recolhimento da União, os mapas rabiscados, alguns números de telefone, o calendário todo marcado de vermelho ou com balões a caneta.
A agenda de 2010 ainda será construída, com essa espécie de furor colaborativo que os dias vão impingindo. Mais cartões de visita cujos donos jamais contactei; diversos números de telefone para os quais não liguei, aliás, sequer havia ali os nomes das pessoas; comprovantes bancários aos montes, já que isso ocorre amiúde; dinheiro perdido (antes isso, dentro da agenda); fotos três por quatro; e clipes. Muitos clipes. Alguns que seguram papéis, outros soltos, perdidos dentro das páginas, sem a menor lembrança do que poderiam ter firmado ali.
Minha mãe sempre diz que nas agendas não cabia o texto dos seus dias, ao menos enquanto ela trabalhava fora. Depois de aposentada, as agendas ficaram vazias, porque ela quis assim. Fico pensando se ela utilizava agendas como diários. Diários de bordo, de intimidades, de segredos, de relatos profissionais. Diários são perigosos. Não são blogs, são diários, daqueles em que apostamos quando somos cheios de pequenas ocorrências veladas. Minha agenda é um mero calendário com apontamentos para os futuros próximos. Ir aqui ou ali, pôr no Correio, almoçar com, jantar sem, convidar para, obedecer, fazer reunião, escrever e ler, viajar, São Paulo, Recife, Niterói, Argentina. Pequenas amarrações entre os dias, as semanas, os meses. Filho fica com a vovó, alarme na casa, alerta. Mamãe voando pelos ares. Agenda cheia. Mãos vazias, mas sempre vem um carrinho dentro da mala.
A gente viaja, anota na agenda, visita os amigos, almoça muitas calorias por ano em terra estrangeira, mas não conhece direito as cidades e as pessoas que moram lá. A gente sabe do museu, passa pela avenida, atravessa diante do monumento, mas mal olha para cima. E quem disse que essas coisas são mesmo a alma da cidade? O trânsito de São Paulo não é turístico. Recife quase não dá praia fora de temporada. Campina Grande sem festa junina. Belo Horizonte às segundas tem bares fechados. Ouro Preto sem igreja. Universidades sem alunos. A alma fake das cidades. As agendas são os hodômetros dos dias vividos com pequenez. E não é assim mesmo? É triste quando alguém acredita na promessa da vida agitada de artista. Os dias são medíocres, sem demérito.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
18/12/2009
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