COLUNAS
Quinta-feira,
18/3/2010
A Onda, de Dennis Gansel
Ana Seffrin
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Imagine um professor indagando seus alunos a respeito da possibilidade de uma ditadura novamente tomar os holofotes da política na Alemanha. Um dos pupilos responderia, na estranheza de uma averiguação iconoclasta, que tal advento não poderia sequer ser imaginado; ademais, enfatizaria: "estamos acima disso". Imagine o desinteresse precípuo de uma turma escolar, o desinteresse em assuntos que digam respeito à história política, econômica e social da humanidade. O esforço imaginativo, sem dúvida, não seria de difícil envergadura; se estamos em vigília à própria capacidade de abstração, compreendemos o desinteresse de alguns, a falta de credibilidade de outros, realidade educacional pesarosa condizente não apenas com os patamares estudantis da Alemanha, mas com a de inúmeros países ― nesse caso, o Brasil poderia ser incluído. Agora, imagine um professor predisposto a "revolucionar" o ensino ― à sua própria maneira ―, criando um método pedagógico de simulação; imagine uma aula sobre "autocracia".
Autocracia não significa corrida de carro em crateras. De origem grega, a palavra deriva dos radicais gregos "autos" ― por si próprio ― e "cratos" ― governo ―, havendo, de igual modo, derivações secundárias de significantes, com proximidades inefáveis às primeiras constituições de sentido ― "auto" de próprio e "kratia" de poder. A convergência de capacidades discursivas da matéria infiltra a exploração de um terreno histórico amplo. Com a parcimônia acostada aos olhos, autocracia denota um tipo particular político, onde o indivíduo ou grupo na liderança tem poder ilimitado para mudar as leis, se achar necessário. Imagine um professor perguntando a algum aluno um exemplo factível de "autocracia"; o Terceiro Reich, à primeira vista, é a resposta que está na ponta da língua, mas tratar-se-ia de uma temática repassada de modo reiterado nos bancos escolares, uma história de holocausto e deflagração de todo o tipo de horrores, menção de erros e culpas de "outros", não das gerações presentes. Alguém poderia salientar: "não é questão de culpa, é questão de responsabilidade histórica". Então outra indagação viria à tona e não calaria: outra ditadura seria possível na Alemanha?
Para além dos acontecimentos que possivelmente poderiam desenrolar-se num país que há vinte anos dividia-se ideologicamente, pergunte-se: outra ditadura seria possível no Brasil? Achar-se diante da necessidade de discutir a questão é um tema por si só pesaroso e complexo; muitos responderiam que já vivemos em um Estado Democrático de Direito e que tal possibilidade não passa de uma petrificada constatação passada, não mais presente e atual, tendo em vista que "estamos acima disso". De outro modo, há a substancialidade decisiva em refletir sobre o que uma ditadura, para estruturar-se, necessita. Um Führer? Há títulos históricos equivalentes à nomenclatura de Adolf Hitler: Mussolini fora chamado de "Il Duce"; Francisco Franco de "Caudilho"; Getúlio Vargas de "Chefe Nacional". Em termos resumidos, precisaríamos, para a composição de uma autocracia, de um Duce, um Führer, um Caudilho ou um Chefe Nacional? O emblema autocracia e ditadura delimitam a existência de líderes? Tais proximidades levam-nos ou não a pensar em ideologia, controle, vigilância, nacionalismos ou insatisfação?
Todos esses elementos são trazidos, com brilhantismo e astúcia, na produção cinematográfica alemã A Onda (Die Welle). O filme, dirigido por Dennis Gansel e estrelado por Jürgen Vogel, Frederick Lau, Jennifer Ulrich e Cristina do Rego, dentre outros ― atualmente, a jovem vanguarda geração talentosa de atores alemães ―, é um esboço de questionamentos sociais de pertinência absoluta e atemporal. É também um aprendizado sobre como podemos nos tornar guerreiros solitários.
Rainer Wegner ― interpretado por Jürgen Vogel ―, professor de Ensino Médio, tem o dever de ensinar seus alunos sobre autocracia. Para tanto, seu curso irá se desenrolar no período de uma semana. Do desinteresse inicial daquela classe com características diferenciadas e peculiares ― desde o "nerd" inquestionável, passando pelo galanteador loiro até o "autista" ausente ― o professor lança um desafio, o desafio da união, recorrendo às fórmulas de ordem e disciplina enquanto padrões de vivência. Os alunos decidem que o próprio professor será o líder do grupo. A classe, em vista das ordens e instituições comportamentais, aos poucos consegue compreender o significado de unidade e união ― o sombrio poder da união. Raça, religião, cor de pele ou qualquer outra individualidade perdem categoricamente o interesse e os parâmetros de igualdade ensaiam-se como regras de vivência. Decidem, também, usar um uniforme ― concordando veemente na assertiva do quanto uniforme militares são grotescos ―, utilizando, todos ― com exceção de uma personagem que haverá de se rebelar contra esse sistema aparentemente deturpado ―, camiseta branca e calça jeans ― a fim de eliminar as diferenças sociais ou, até mesmo, comportamentais. Rainer consegue conquistar a simpatia dos alunos, tentando fazer valer um experimento com capacidade de explicar os mecanismos do fascismo e do poder. Seu movimento recebe o nome de "A Onda". Tal qual aquela constância marítima endurecida e relativizada pelos movimentos das marés, a experiência das águas desaba em um choque sem retorno.
A produção é recheada de observações contundentes; desde jovens sobrecarregados em um exercício de autoindagação a respeito de possíveis infortúnios da vida ― "nada mais, aparentemente, vale a pena" ―, até os que percebem que o desejo da juventude contemporânea gira essencialmente em torno da diversão. O fio condutor dos personagens também permeia orientações em pensamentos próprios: o que "falta nas gerações é, nada mais, nada menos, do que um objetivo comum para uni-los". Em meio a uma série infindável de transtornos existentes dentro dos muros escolares ― desde casos de bullying (agressões verbais) até agressões físicas sorrateiras ―, e fora deles ― como, por exemplo, a palavra "Paris Hilton" ser a mais procurada no Google ―, o que parecia ser uma completa impossibilidade diante das circunstâncias ― um professor estimulado com os alunos, alunos discutindo amplamente questões de política ― torna-se o frenesi de uma energia surreal de "força pela disciplina" deflagrada.
Não apenas por se tratar de uma produção única, o filme compensa pela belíssima fotografia e pelos jogos nos focos da câmera que, embora raros, consubstanciam o enredo em um relógio de proveniência distinta; você não sente o filme passar e os ponteiros são um jogo decisivo de vida ou morte. Como fenômeno de transcendência, denota a irracionalidade do poder nas discursivas contaminações de qualquer tipo de fascismo nos tempos passados, presentes e futuros. Rainer tentará romper com a propagação do poder e do fascismo disciplinar quando o jogo ficar sério, mas aí poderá ser tarde demais.
O enredo é baseado em uma história real ocorrida na Califórnia, em 1967, em Palo Alto. Um professor norte-americano chamado William Ron Jones resolveu realizar um experimento em sala de aula: reproduziu estratégias utilizadas por ditadores ― sobretudo Hitler ― para demonstrar o quanto o poder de dominação das massas era de simples engrenagem. O resultado dessa experiência está traduzido em um conto literário de William, que foi capaz de tornar essa experiência uma completa orientação de violência. Também vale relembrar que o filme alemão contemporâneo é uma espécie de refilmagem americana de apenas 45 minutos, dirigida por Alex Grasshof, de 1981, também denominada The Wave (A Onda). Não é à toa que a música de abertura da produção alemã é justamente "Rock'n'Roll High School, dos Ramones ("Well I don't care about history, rock, rock, rock'n'roll high school, 'cause that's not where I wanna be, rock, rock, rock'n'roll high school (...)/ hate the teachers and the principal, Don't wanna be taught to be no fool (...) Fun fun rock'n'roll high school, Fun fun, oh baby"); uma atenção maior a essa composição leva a crer o quão emblemático o ambiente escolar pode ser e o quanto essa engrenagem é, naturalmente, emblemática.
De todos os tipos de fascismos e pregações ideológicas existentes, é inquestionável a importância dessa produção cinematográfica, simetria daquilo que não podemos nos omitir enquanto labores da academia universitária. Essa conexão, em torno dos grupos ideológicos comumente tingidos e reconhecidos nas páginas da história ― Ku Klux Klan, apartheid, macarthismo, ditaduras latino-americanas, Hamas, Farc, nazismo, fascismo, marxismo, comunismo, anarquismo e a infinidade de "ismos" e "ias" antiprovidenciais ―, é uma conexão que, sobre a insígnia do ódio e da violência, torna seres humanos ventríloquos de discursos omissos de caracteres minimamente éticos e adequados à realidade social humanitária. Na medida em que se assume a tarefa de mostrar esse retrato, A Onda possivelmente é uma excelente averiguação desse flagelo.
Para ir além
Veja o trailer do filme
Ana Seffrin
Porto Alegre,
18/3/2010
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