COLUNAS
Segunda-feira,
3/12/2001
Ventania quinta-feira à noite em Chicago
Arcano9
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(Efeitos sonoros de vento/pessoas caminhando apressadas/buzinas gravados em Chicago)
A Windy City não me chamou a atenção apenas pela grandiosa arquitetura, pela dinâmica relação de seus habitantes com os carros e semáforos, pelas lindas esculturas de Picasso e Miró em pleno centro da cidade. Tampouco foi pelo lago Michigan e seu azul congelante em tardes de sol de novembro. Chicago uiva - o uivo do vento é tão insistente que me fez desistir de usar cabelo comprido (hábito que mantinha desde 1997) porque não havia elástico que o prendesse longe do meu rosto, e para ser honesto eu queria ver as coisas direito. Mas a cidade uiva de um modo mais complexo do que você imagina. Aconselha-se a todos que visitem Chicago a fechar os olhos e se concentrar. Em uma chicotada forte de ar gélido, você pode ouvir saxofones. Saxofones? Sim, ouça bem, ouça, em meio às buzinas. Mas não são saxofones de musak, são saxofones à antiga. Saxofones que jovens com cabelo comprido, supostamente, detestariam.
Al Capone, dizem, era um sujeito que, além de gostar de dinheiro, poder e de viver perigosamente, sabia como gastar sua grana com diversão. E na Chicago das primeiras décadas do século passado, a parte imediatamente ao norte do "loop" (o centro da cidade) é onde estava o mais quente em matéria de agito. Algo como a Lenox Avenue (hoje Malcolm X Boulevard) do Harlem, Nova York, lá pelos anos 30. Também essa parte ao norte do Loop, que doravante chamarei de Uptown, tinha essa reputação de atrair os branquelos da cidade. O Harlem novaiorquino ficou meio separatista, Uptown, não. (Trilha sonora para este trecho: Basin St. Blues, Hot Seven) Na parte ao sul do centro, especialmente no bairro de Bronzeville, é que se instalariam as lendas negras do jazz que haviam subido todo o Mississipi com suas buzinas maravilhosas e passaram a trabalhar nos Speakeasys de Chicago, nostálgicos das raparigas atrevidas e da vida morna do finado Storyville de New Orleans.
Mas voltemos a Uptown. Pegue o metrô linha vermelha. Desça na estação Lawrence e, logo de cara, você dá de cara com dois grandes clubes, visíveis da plataforma. O Aragon ainda tem suas luzes piscantes toda noite, é freqüentado por milhões por ano, mas decidiu se reinventar. Hoje, é uma venue para shows de rock e blues, que atraem sujeitos barulhentos e cheios de hormônios. Lá do outro lado, fica a casa chamada Uptown.
(Sem trilha sonora)
As letras com o nome do clube estão lá, a vontade de festejar está lá, mas o lugar está fechado. O Uptown é um dos inúmeros clubes de jazz de Chicago que marcaram época nas primeiras décadas do século XX que ou desapareceu, ou foi desativado sem a mínima cerimônia. Uma pena. Construído em 1925 com um custo de US$ 4 milhões (uma fortuna para a época), o local foi o escolhido por Duke Ellington para um histórico show em 1931. Casa lotada.
(Trilha sonora: Sing Sing Sing, Harry James Orchestra)
A seguir, à esquerda, você descobr os neons verdes. Uma casa pequena, uma fila grande. Janela enegrecida. São US$ 7 de entrada. Sempre me falaram para procurar por este clube em Chicago.
No interior do Green Mill, descortina-se um salão longo, com um grande e espaçoso balcão. Tudo meio escuro. Nas paredes, grandes pinturas a óleo, meio enegrecidas, como se estivessem lá há muito tempo. Tudo está lá a muito tempo. O balcão é o balcão ascestral, o balcão arquetípico, de madeira, bordeado de um lado por sujeitos com cigarro no canto da boca e por outro por barmen com bigodinhos e aventais brancos, enxagüando copos. Atrás dos barmen, aquela coleção vasta de etílicos, tão colorida. Duas garçonetes lindamente maquiadas desfilam com suas bandejas com drinks erguidas muito acima de suas cabeças. Retiro meu sobretudo, penduro-o nuns cabides ao lado. O cheiro não é de nostalgia. Nem de ar condicionado. O cheiro é de noite. Noite que promete, que não vai te deixar na mão. Assim pensam os sujeitos sentados nas mesas, à esquerda do corredor por onde adentro o recinto. O balcão à direita, às mesas à esquerda. Em cada mesa, velas. Velas e talheres brilhantes refletindo a luz difusa vinda dos quatro ou cinco lustres em forma de concha colados ao teto. Conchas que escondem as lampadas, e só permitem que a luz saia e ilumine o necessário.
Num canto, uma velha jukebox para tocar singles, exclusivamente de jazz swing. Quando eu chego, é Harry James que está tocando.
O dono do local passa por mim. Careca, robusto. Parece o Kojak. "The gig starts 9 o'clock, sharp", diz ele. Pergunto o que teremos. "A big band. People like it. It's really good, indeed. They play here every thursday. We have jazz every night".
(Sons de pessoas dentro de um bar, garrafas, risadas, gritaria e música de jukebox bem fraca ao fundo)
De fato, sento-me ao lado da jukebox e percebo os abalos sísmicos dos músicos chegando de mansinho. Um trombonista com barbicha. Um cara com chapéu e seu trompete. Outro, mais velho, bem arrumado. O palco está armado, no fundo do salão, em frente ao palco, uma pequena pista de dança. Muitas, muitas pessoas estão chegando. Um grupo de balzaquianas rizonhas com profundos pés-de-galinha e sorrisos maravilhosos. Um gordo sozinho, que senta-se no balcão e parece desesperado para conversar. Um grupo de jovens de 18 a 24 anos, dois garotos e duas garotas, rindo alto, tomando martinis com aquela azeitona no palitinho e se beijando entre um gole e outro. Um casal, que já não encontra um lugar vago, ele um loiro de fala muito mansa e ela com olhos meio puxados e um sotaque britânico. Acho que ela canta num grupo pop de algum sucesso em Londres. Penso nisso por pouco tempo. Estou de pé ao lado do casal, ao lado do balcão. Uma voz possante e alegre invade os ouvidos e silencia o bar.
"Ladies and gentleman. Welcome to the Green Mill. This is the Alan Gresik's Swing Shift Orchestra, bringing to you all the good times that never go by. So, brace yourselves. We would be delighted to see some of you dancing here in front of us. Let's start with a big hit that most of you should know. If you're blue/ and you don't know/where to go to/ why don't you go DANCE with us?"
(Trilha sonora: Puttin' on the Ritz, Alan Gresik's Swing Shift Orchestra, gravada ao vivo no Green Mill Club, Chicago, 8 de novembro, 2001)
Três trompetistas, três trombonistas, três saxofonistas/clarinetistas, baterista, baixista, pianista/maestro, um mestre de cerimônias. Já havia ouvido big bands ao vivo antes. Mas não em um local tão típico. E quando você vê coisas como essas acontecendo, quando você encara uma exibição tão espontânea daquilo que você só vê em filmes ou só imagina após ler um livro, sua tendência é ficar eufórico. Os riffs dos intrumentos de sopro intoxicam, envenenam, e os efeitos dessa intoxicação são uma tremedeira involuntária da perna, o cantar convulsivo da letra da música, o sorrir ingênuo e sincero. Reza a lenda que o Green Mill, de fato, foi freqüentado pelo Capone, e que todo o ambiente foi carinhosamente mantido como era naquela época. Outra lenda: atrás do balcão, embaixo dos pés dos barmen, existiriam portas ocultas, levando a labirínticos túneis e a salas onde funcionavam cassinos e speakeasies na época da lei seca. Procuro com sutileza por evidências que comprovem tais boatos. Está tudo muito escuro por lá. A luz se concentra nos metais sonoros. Um casal apressado, apenas um, dança.
(Fim da música - som de risadas, copos)
No intervalo entre uma música e outro, um casal de radioatores vai ao microfone e encena uma pequena propaganda radiofônica nos moldes daquelas ouvidas nos anos 30. Muito engraçado. Dura um minuto apenas, o tempo suficiente para a Doris Day da noite ajeitar o seu decote. Uma mocinha gorda e simpática. E que vozeirão.
(Trilha sonora: Ain't Misbehavin', Alan Gresik's Swing Shift Orchestra, gravada ao vivo no Green Mill Club, Chicago, 8 de novembro, 2001)
A mocinha dá um tom mais lento e melódico para a imortar composição de Fats Waller, que eu só conhecia de uma gravação efusiva de Louis Armstrong e seus All-stars. Música que dá o contraponto romântico da tocada antes, Puttin' on the Ritz, mais sincopada. Três, quatro, cinco casais se aproximam da pista. As mulheres encostam a cabeça no peito dos homens. Penso rapidamente no Brasil: quando isso acontece? Festas de formatura - quando mamães dançam com os filhinhos? Festas de casamento - que ocorrem uma vez a cada 86 meses? Bailes de terceira idade - que tem essa aura de coisa mofada? A atmosfera é romântica. Que falta isso faz. De repente, acho que o ambiente, a música, as cores, tudo me faz ter uma saudade de um tempo que eu nunca vivi. Mas nada tem cheiro de nostalgia, e a noite continua. Continua para os românticos e despreocupados; para os estressados se redescobrindo; para o gordo solitário que continua no balcão desesperado para conversar. Para a menina de olhos puxados, que continua conversando, apenas conversando com o sujeito de fala mansa. Para os garotos e garotas daquela mesa que, apesar da tenra idade, decidem arriscar uns passos na pista.
A trilha sonora prossegue. Uma versão estilizada de Sweet Georgia Brown. Outra de Down By the Riverside.
Take the A Train.
Lady Be Good.
Duas cervejas depois, três sets depois, lá pelas duas da manhã, após requebrar seqüências de melodias otimistas e melancólicas, deixo o clube. A sensação que tenho é de que, se eu descobri esse clube e tanta gente vem aqui, é sinal de que eu não sou o único no universo que gosta desse tipo de ambiente. Vou procurar mais. Em Londres, deve ter alguma coisa. Até mesmo em São Paulo. Nem que, lá, as big bands tenham que fazer arranjos da dança do Tigrão. Deixa pra lá. Ouço ainda os saxofones. Os saxofones da Windy City. O vento forte, frio, cortante me estimula. Onde há música, há alegria. Onde há alegria, há vida. E esse vento forte, frio e sonoro ainda dança comigo. Se você vier a Chicago, amigo leitor, não deixe de dançar com ele.
Para ir além
Green Mill Jazz Club
4802 N Broadway, at Lawrence EL station
Chicago
Tel. 773 878 5552
Arcano9
Londres,
3/12/2001
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