"Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular." (Carlos Drummond de Andrade)
Partimos do princípio de que a boa música é universal e que a distinção em estilos tem apenas a função prática de agrupar os semelhantes. Quanto aos compositores, a providência salienta os melhores e justifica-lhes a proeminência, pois podemos avaliar o alcançado por eles em sua época e local, dispondo eles dos recursos que dispuseram. Aqui reforça-se a corrente antropológica que relativiza o gênio e realça a importância do meio. Por este ângulo, o temperamento de Beethoven talvez não se adequasse à New Orleans do século XX e por isso não frutificasse tal como frutificou no que constituía a Alemanha do século XIX. Ou, fosse igualmente bem-sucedido, daria um novo enfoque para a discussão sobre o que é ser gênio, assunto que já foi pauta especial do Digestivo Cultural. De qualquer forma, quer a genialidade dependa do meio para manifestar-se, quer a genialidade supere o meio ― conforme entendemos ―, o certo é que este predicado não pode ser negado a Angenor de Oliveira, o Cartola.
Angenor nasceu em meio simples, quando morar em favela significava morar em periferia, não em meio onde as pessoas precisam ser lembradas com urgência da dignidade humana que lhes é inerente. Pobre e mal instruído, sua carreira musical "torna feia" a situação dos atuais divulgadores de ruídos e de modismos flutuantes. Cartola compensou sua má formação escolar com a leitura de grandes nomes da poesia nacional e portuguesa: Castro Alves, Gonçalves Dias e Guerra Junqueiro. Suas composições provam que, si com eles compartilhou a inspiração, seu estro colheu na realidade próxima os elementos integrantes de sua poética. Enfim, a poesia já estava no olhar que lançou ao mundo. Olhar bonito, que transformou repreensão em peça clássica ― "O mundo é um moinho".
Compor, muito compôs, a ponto de esquecer de suas próprias músicas e surpreender-se com a atribuição da autoria. Cada uma, bem arranjada e interpretada, amacia a alma no preparo de melhores sentimentos. "Ah, mas Cartola sofre a barreira do idioma". Temos certeza que não. Inumeráveis pessoas sensibilizam-se com a Nona Sinfonia de Beethoven, sequer sabendo quem foi Schiller. Pessoalmente, colocamos "As rosas não falam", "Sing, sing, sing" ― de Benny Goodman ― e a Quinta Sinfonia de Beethoven no mesmo patamar junto com diversas outras que não teríamos coragem de organizar de forma hierárquica.
A leitura de Cartola ― Semente de amor sei que sou, desde nascença (SescSP, 2008, 118 págs.), de Arley Pereira, ajudou-nos a organizar nossas reflexões a respeito da música dita "popular" e aproveitamos a ocasião de lançamento gradual de uma coleção de CDs por um jornal para conhecer e reconhecer composições que deveriam retomar posição legítima tanto no rádio quanto no MP3, deslocando a escória invasora. "São pessoas de outra época e gosto", retrucam, "não teriam apelo junto ao público de hoje". Certa colega de classe, com a metade de nossa idade, explicou-nos mui propriamente porque Cartola fez-se moleiro. Enquanto escrevemos, um carro para no semáforo sob nossa janela e as caixas de som, próprias para sacudir um estádio, expelem uma batida acompanhada exclusivamente das seguintes palavras: "vai descendo, vai descendo, vai descendo...".
O livro de Arley Pereira é depoimento afetivo do amigo próximo. Traz alguma documentação, fotos, imagens das capas dos cinco discos de Cartola, amostra de letras de músicas escritas em papel timbrado do Ministério da Indústria e do Comércio, onde o músico trabalhou como contínuo. Observamos que, provavelmente, muitas das pessoas que foram servidas de café sequer dirigiram um "obrigado" ao contínuo de compleição de passarinho. O livro segue a linha cronológica, mas sem o porte e o alto grau de pesquisa e investigação que caracterizam obras de maior fôlego, como a excelente biografia que Celso Campos Júnior escreveu de Adoniran Barbosa.
Afastadas as polêmicas oriundas das avaliações pessoais, é no mínimo interessante notar o diálogo entre grandes expressões da música brasileira do século XX. Cartola e Noel Rosa foram companheiros de violão, de copo e de borracheira. Ambos precisaram ser levados do botequim para casa por Deolinda ― companheira do primeiro antes de Euzébia Silva, a conhecida Dona Zica ― banhados e asseados com talco "nas partes". Amizade estreita que levou Rosa a abrir mão em favor do amigo de direitos autorais pela música "Qual foi o mal que eu te fiz". Quem os adquiriu foi Francisco Alves, um dos grandes cantores da época. Encarregado de apresentar a nata de nossa música ao maestro Leopold Stokowski, no episódio do navio Uruguai, Heitor Villa-Lobos elegeu Cartola como notável representante da música popular. Encantado com a obra do sambista, o compositor erudito Radamés Gnatalli encarregou-se dos arranjos musicais na gravação do disco Autonomia, reservando para si o piano, instrumento para o qual deixou excelentes concertos.
Sérgio Porto e Carlos Drummond de Andrade usaram da palavra para expressar a admiração pelo poeta mangueirense. Agradável surpresa teve lugar quando o temido crítico José Ramos Tinhorão ― temido porque afirma e fundamenta ― publicou um texto elogioso por ocasião do lançamento do disco Cartola, em 1974, qualificando-o como "um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira". Os dados biográficos sobre Angenor de Oliveira são poucos e repetem-se nas fontes. Este fato, aliado ao seu reconhecimento tardio, desvia a atenção de sua vida particular e concentra-a na sua incomparável obra.
Quando pensamos em Cartola, acreditamos que a poesia de suas músicas são como flores do campos, enfeitam a natureza, traz um quê de beleza pra encantar. A sua música nasce da simplicidade de um homem do morro lavador de carro, sorveteiro ambulante, pedreiro. Quando as suas músicas já eram executadas na Itália, por uma orquestra, ele passava necessidade no Brasil. E a elite brasileira, preconceituosa, com certeza, fazia de conta que ele não era ninguém. O seu samba de morro não era de desfile de escola de samba, mas da passarela do coração. Agenor de Oliveira. Foi um sonho que solidificou e as suas poesias teve o cherio das rosas. Disse tudo encantou o mundo.