Anuncia-se a Copa! Lentamente começam a aparecer as horríveis bandeirinhas verde-amarelo, de plástico vagabundo, nos lembrando que temos uma bandeira e um time para torcer. Os pequenos retângulos coloridos, colocados em um pequeno suporte de plástico, madeira, ou seja lá o que for, multiplicam-se feito barata. Primeiro, nas janelas de um carro ou outro, mas rapidamente vão tomando conta do cenário, fazendo perder de vista quantos carros carregam a pequenina flâmula dupla-cor. Uma puxa a outra e assim sucessivamente. Depois aparecem nas janelas dos apartamentos, amarradas a postes, árvores, varandinhas de bar ou casas. Onde quer que você estiver poderá ver uma delas a poucos metros de seu alcance.
Em seguida elas vão migrando para as latas de cerveja, as camisetas, as havaianas, os álbuns de figurinhas, os brinquedos, as propagandas de banco, o sorvete, os plásticos das balas, os automóveis, as lojas variadas, ou seja, em tudo o que for possível fixar uma pequena imagem. Contaminando cada pedacinho do nosso território, não temos como escapar à visão da Bandeira do Brasil.
Pode-se perceber um certo orgulho nas pessoas que se dispõem a carregar e balançar o pequeno pedaço de papel ou plástico cor verde-amarelo. O Brasil retoma sua autoestima num campo onde se acredita vencedor. Nos outros campos (saúde, educação, direitos humanos, democracia racial), não temos tanta certeza em honrar a nossa bandeira, por isso ela desaparece fora da Copa. Não faz sentido ficar por aí carregando algo que nos envergonha.
Os campos de pelada ficam mais e mais cheios de moleques, rapazes, homens, todos querendo experimentar o prazer de ver e ter a bola rolando nos seus pés como se fossem os jogadores escolhidos para o evento da Copa. Corre-se para lá e para cá, no sonho de nossas pernas a golear o inimigo como se fossemos os craques a vencer nossos concorrentes.
A multiplicação das imagens da Copa vai ganhando campo. Passa-se em revista todos os jogadores de todos os times, suas potencialidades e fraquezas, como se não houvesse assunto que pudesse competir com esse. Cada frase emitida por um jogador é devidamente comentada, algumas vezes até a exaustão. Cada pequena torção ou machucado de jogador é recebida com suspiro pelos fãs ardorosos e multiplicada pela mídia para que o planeta todo saiba.
Jogadores tornam-se heróis se são escalados para a seleção que vai jogar na Copa. Da mesma forma que uma alegria homérica, contagiante, acomete os selecionados para a Seleção, dores inconfessáveis atormentam os deixados de fora desta vibrante competição. Sabe-se que ali, naquele gramado observado pelo mundo, encontra-se uma das melhores chances de se poder fazer o pé-de-meia, tornar-se referência e, consequentemente, ricaço, se vir a ser comprado por um time milionário. o quanto de dinheiro se poderá ganhar em propagandas nem se fala. Por isso, perder essa chance é perder não só uma aventura esportiva, mas também um futuro tranquilo deitado em berço esplendido de euros.
Um novo frisson nos toma de súbito! Estamos preparados para a maior competição esportiva do mundo. As tabelas nos indicam a que horas o país vai parar. Telões são construídos e dispostos em praças públicas, bares aumentam o tamanho de suas TVs para o público ver melhor seu jogo. Inúmeras trombetas ensurdecedoras são levadas por um público irritadiço, que a sopra de dentro de sua intranquilidade, pois embora psicologicamente autoconfiante, esse mesmo público está ao mesmo tempo temeroso do fracasso. Por isso, gritar, espernear, soprar cornetas, soltar foguetes é a terapia do stress que se avizinha.
A cada dia que se aproxima, esse frisson nos deixa mais excitados. Não vemos a hora de nos perdermos dentro dessa competição. Quando nosso hino for tocado, nossos pelos vão se arrepiar, nossos olhos se encherão de lágrimas, nosso coração baterá mais forte. A contaminação foi um sucesso. A mídia forçou a barra, alimentou sonhos, criou expectativas e ilusão. Deliciosa ilusão, eu diria, para não cortar barato.
O comércio cresce junto: camisetas, brinquedos, bolas, cerveja. Deslocamentos nacionais ou internacionais ampliam o turismo. Fabricação de penduricalhos leva produtores e consumidores a uma relação de consumo legitimado e sem culpa. Tudo para se tornar uma pessoa verde-amarela, com direito a chapéu, camisa, short, sandálias, trombetas etc. Quem estiver de fora, não é bom da cabeça.
A ideia de unidade nacional, de uma força única, se faz presente. A crença num objetivo comum nos une na alegria e tristeza desta Copa. A massa manipulada sente que ela é quem está manipulando, tornando cabível sua alegria destemperada ou sua dor exaltada. Todos se movem num único coração, como se cantou em outros tempos. A falsa ideia de unidade nacional (tão cara a regimes fascistas) é um dos pilares da Copa, onde se abolem as diferenças de classe, cultura e tudo o mais. Todos se sentem unidos, quer estejam na frente de uma TV de plasma ou ouvindo o jogo num radinho de pilha.
Há algo de redenção simbólica nesses jogos. Há a vitória do talento sobre a força econômica e sobre o poder político dos países do primeiro mundo. Há um sentimento de revanche. Ou não?
Pouco importa tudo isso agora se estamos cegos para ver o que não seja a Copa do Mundo, com seus atletas convertidos em heróis a nos dar a alegria contagiante da vitória ou a tragédia da derrota vergonhosa. Façam suas apostas.
Caro Jardel Dias Cavacanti,
confesso fiquei sem entender seu texto "O novo frisson da Copa". Há algo nele que me deixa com pulga atrás da orelha. O fanatismo religioso como a história tem demonstrado é terrível. Cega o crente em verdades cristalinas, incontestáveis e petrificadas. O ateismo, por isso, não deixa de ser um antídoto para se contrapor as formas obscuras do fanatismo religioso. Mas o remédio é uma coisa com uma medida que pode assustar: em demasia, mata. O ateismo mal-ajambrado pode ser o melhor dos mundos para os fanáticos religiosos. Não sei se me explico. Espero que sim. Mas a forma de exposição de sua opinião sobre a Copa do Mundo carrega um peso desmedido, como o de remédios que, em vez de curar, matam... Mesmo que concorde com muito do que escreveu, sinto que sua exposição podia ser melhor calibrada. Os tiros que você desfere pode matar quem defende ideias similares as que você apresenta