Na Copa do Mundo de 90, na Itália, o técnico foi Sebastião Lazaroni, que um ano antes ganhara a Copa América, competição na qual o Brasil não ia bem (a conquista de 89 quebrou um jejum de quarenta anos nesse torneio, que até então era o preferido de argentinos e de uruguaios). Com a conquista da Copa América, Lazaroni teve carta branca da CBF e levou para a Itália a primeira geração pós Zico, Falcão e Sócrates. Esta geração, como se sabe, perdeu as Copas de 82 e 86. Lazaroni, então, formou uma seleção com alguns egressos de 86, mas fundamentalmente com espírito diverso da geração anterior e que tinha no meio-campista Dunga uma espécie de emblema daquele grupo que foi para a Itália com o peso de conquistar um título que há 20 anos o Brasil perseguia.
A seleção de 90 não se deu bem, foi eliminada justamente pela Argentina de Maradona, e aquele time passou para o anedotário do futebol como a "Geração Dunga". A história tem seus caprichos e, em 94, Dunga, capitão da seleção contra a vontade de muitos que viam-no de sobrolho, levantou a Copa do Mundo, num feito esperado por 24 anos. Dunga, ainda, em 98, novamente como capitão da seleção, chegou a outra final de Copa do Mundo, contra a França. O Brasil, como todos sabem, perdeu a final, mas não lembro outro capitão de seleção em qualquer país que tenha chegado a duas finais seguidas de Copa do Mundo (quem foi o capitão italiano nas finais de 34 e 38? O jornalista Paulo Vinícius Coelho, do ESPN e jornal Folha de S. Paulo, que se esmera com memória invulgar, responderia de bate pronto?).
Dunga e sua geração foram estigmatizados em 90, ganhou a Copa de 94, mas, quando a Copa acabou, voltou-se para a imprensa e disse: esse título é para vocês, seus traíras! Na época, com o título, Dunga tinha um alvo bem fixo: a imprensa esportiva. O tempo passa e, após a controvertida participação na Copa da Alemanha em 2006, Dunga foi chamado pelo presidente da CBF, Ricardo Teixeira, para técnico da seleção. No início, desconfiança; depois, títulos, vitórias incontestes sobre a arquirival Argentina, sobre o Uruguai em Montevidéu, classificação antecipada para a Copa Sulafricana de 2010. Mas, após a convocação, a imprensa bate pesado em Dunga, que, quando tem microfones e holofotes, revida com virulência que impressiona.
Recentemente, em entrevista coletiva, Dunga afirmou, para afrontar os jornalistas, que a seleção era sua. Se perder, será ele e sua seleção que serão derrotados e, portanto, alvos de ira jornalística. Dunga, por isso, foi acusado de levar para o "pessoal" o que é um trabalho jornalístico. O que se pode extrair é que Dunga, como figura do futebol brasileiro, marca como poucos (como jogador ou agora como técnico) sua passagem na seleção. Com seu estilo duro e seco, ele não agrada a gregos e troianos, mas creio que seria o caso de observá-lo com um olhar, digamos, mais pausado: ele tem história, sabe o que é futebol para além das pranchetas dos jornalistas especializados (tenho em vista principalmente Paulo Vinícius Coelho), ganhou, perdeu, foi estigmatizado e convocou uma seleção praticamente pautada pela relação de confiança num grupo que se formou ao longo desses últimos quatro anos.
Espera-se que uma seleção não agrade a todos. A "seleção de Dunga" não é a que muitos gostariam, mas o que muitos podem não gostar, e isso não tem importância, é que ele dá a incautos e especialistas, com certa generosidade inconsciente, motivos para pensar. Se perder esta Copa, como ele e todos nós sabemos, será execrado; se ganhar, pode até ser desdenhado, como muitos desdenham a conquista de 94, mas a terá ganho e, junto ao coro dos ressentidos, ouvir-se-á: HEXA! O que se pode aprender com Dunga e sua seleção? Revelamo-nos à altura dos acontecimentos quando nos elevamos na vitória e na derrota, não quando choramos e procuramos culpados, como crianças imberbes que não têm a bola só para si.
Mas o que quer dizer que Dunga leva para o lado "pessoal" o que seria um trabalho jornalístico? Creio que há muito tempo o trabalho da imprensa esportiva em época de Copa do Mundo, principalmente, carece de autocrítica. Para além da ajeitada de meia de Roberto Carlos na jogada que resultou no gol de Thierry Henry na derrota para a França na Copa de 2006, a imprensa tem também grande parcela de culpa pelo insucesso da seleção. O papel da imprensa esportiva é ― todos com bom senso hão de concordar ― cobrir a seleção, manter-se numa posição quase neutra para falar o que acontece, digamos, de "bom" e de "ruim". Mas muitos, muitos jornalistas acabam por ter uma influência que vai além da mera cobertura profissional. Num momento como o de Copa do Mundo, de ânimos exacerbados e de paixões incontidas, muitos jornalistas esquecem o profissional e falam da seleção como se fosse uma coisa "pessoal", de torcida a favor ou contra conforme não tenham a seleção que desejam.
O que esperar dos jornalistas? Na posição em que eles estão, menos paixão, mais discernimento e cultura futebolística. Dunga tem história e sabe bem mais de futebol do que possa desconfiar nossa vã filosofia. O que esperar de Dunga? Que, se perder, tenha a dignidade e grandeza que tem demonstrado ao longo de sua carreira: uma derrota, como os gregos ficaram sabendo com os trezentos liderados por Leônidas em Termófilas, não é simplesmente uma derrota. Basta, para tanto, ler as belas páginas de Heródoto. As derrotas em 82 e 86 serviram para que não se cometessem erros similares em 94. A derrota em 2006 traz uma experiência a não ser seguida agora em 2010. A presença de Dunga como técnico da seleção afirma que em 2010 não se repetirá o que ocorreu em 2006.
Dunga leva para o pessoal? Aí os jornalistas precisariam ter grandeza. Em certos momentos, argumentar que alguém leva para o "pessoal" tem algo como falar da bota do soldado antes do desembarque na Normandia. Quem entra em campo de batalha sabe o que pode sofrer, ou pelo menos o que o espera. Imagino no Dia D um soldado a reclamar que a guerra era uma questão pessoal. Estabelecidas as bases para o embate, não posso me esconder sob o manto dos sentimentos pessoais, com o risco de parecer criança sem a bola do jogo. Ao bater, é ingênuo exigir que meu oponente não me bata com força igual ou maior.
O que parece mais saliente com esta "seleção de Dunga" é que grande parte da imprensa está tendo, como teve no passado, grande dificuldade para reagir com grandeza no caso de uma conquista ou de uma derrota. O que espero dos jornalistas em caso de uma vitória não é outra coisa senão lembrarem sempre que essa é a "seleção de Dunga", que assim se manifestou para lembrar que seu time não satisfaz o desejo de grande parte imprensa. Mas, a essa altura, alguém pode imaginar que creio que segmento expressivo da imprensa esportiva torce contra a seleção.
Não acredito, sinceramente, que algum jornalista sério, mesmo que espinafre a seleção de Dunga, torça contra ela. Acredito é que o jornalismo esportivo no Brasil, em grande parte, reverbera a voz da galera, ecoa paixões incontidas, se dispersa em dores de jogadores como Kaká, fofocas de corredores e perde o senso de grandeza e de responsabilidade diante do evento. Raras vezes, cito Juca Kfouri (da ESPN e Folha de S. Paulo), vi um jornalista fazer meaculpa. Não é, portanto, que muitos bons jornalistas torcem, digamos, contra, é que perdem o senso do que dizem e de seus efeitos. Se não quero levar meu alvo de crítica a falar e depois, em momento de fraqueza, acusá-lo de levar para o "pessoal", eu teria que ter discernimento e acuidade para acusar a mulher de Cesar sem ofender Cesar.
A verdade, professor, é que a imprensa vende o bacalhau pelo preço que o cliente quer pagar. Não se vai atrás de informação pura e simples, mas de opiniões nem sempre (ou quase nunca) dotadas de razão. Haja vista que programas pseudo-esportivos pululam por aí, dando espaço a gente como Vampeta e Edmundo comentarem. Tudo porque é este o circo que os espectadores querem ver. Mal sabem, porém, que no circo das "mesas redondas" os palhaços são eles.