De tempos em tempos, o universo sonolento tem um lampejo de autoconsciência, se revira nos travesseiros e cria, meio sem querer, as condições ideais para que floresça a genialidade. Foi assim na Grécia antiga, com Sócrates ensinando Platão ensinando Aristóteles. Foi assim na Viena do século XVIII, com Beethoven seguindo Mozart e Haydn. Foi assim na virada do século XIX para o XX, com mentes brilhantes como Edison, Bell, Tesla, Ford, Lumiére e Dumont inundando o mundo com inovações tecnológicas. Foi assim na Inglaterra dos anos 60, com a assimilação (e, alguns diriam, aperfeiçoamento) do blues e rock'n'roll americano. Foi assim na California do fim dos anos 60. E foi também assim nos escassos anos 80, numa empresa de tecnologia, filhote da Lucasfilm de George Lucas (que por sua vez era filhote da American Zoetrope, de Lucas e Coppola, filhotes daquela mesma onda californiana sessentista), que pesquisava e desenvolvia softwares de computação gráfica na cidade de Emmeryville, CA, perto de San Francisco e do Silicon Valley.
Ela era dirigida por Ed Catmull, um cientista da computação apaixonado por animação, e tinha o nome de Pixar. Por anos, a empresa vinha desenvolvendo ferramentas para a indústria do cinema como o RenderMan, uma espécie de protocolo para descrição de cenários tridimensionais que foi crucial para a disseminação dos efeitos digitais desde então, e que pode ser visto muito antes de nós, meros mortais, termos ouvido falar da empresa, em filmes como Star Trek 2: The Wrath of Khan (1984), The Abyss (1989) e Terminator 2 (1991). Para demonstrar a tecnologia, o chefe do setor de animação da empresa, John Lasseter, produziu vários curtas que se tornaram clássicos pioneiros do gênero, como Luxo Jr (1986), que venceu o Oscar de melhor curta-metragem, Tin Toy (1988) e Knick-Knack (1989). A empresa foi comprada por ninguém menos que Steve Jobs pouco depois de ele ter saído da Apple, passou a usar a tecnologia em comerciais de TV e manteve relações comerciais com a Disney, participando de filmes como Beauty and the Beast e Aladdin, e, mais tarde, assinando um contrato para a produção de três longas-metragens. O primeiro deles se chamaria Toy Story, dirigido por Lasseter.
O conceito era familiar ao estúdio: brinquedos tomam vida quando não estamos olhando (Tin Toy e Knick-Knack eram exatamente isso), mas o tamanho da empreitada era colossal, e não apenas na parte técnica (onde eles precisaram criar a ferramenta com que iriam construir o filme), mas também na criação de uma história que tivesse o nível de qualidade da Disney e fosse ao mesmo tempo original e interessante. Optaram por fazer um "Buddy Movie", onde dois protagonistas precisam superar obstáculos e diferenças em nome de um bem maior. E fizeram um clássico. O cowboy Woody e o astronauta Buzz Lightyear hoje são tão icônicos quanto qualquer Porky Pig ou Ariel. Não era apenas "o primeiro longa de animação gerada por computador"*, era um ótimo filme, com personagens muito bem construídos, bons diálogos, excelente direção (principalmente se levarmos em conta as limitações de uma tecnologia experimental), incríveis cenas de ação e tensão e, pasmem, apenas um momento musical (de cortar o coração), e onde o personagem nem mesmo canta!
A máxima do cinema de Hollywood que diz que uma continuação de um filme não passa de uma tentativa dos estúdios de fazer dinheiro fácil sem oferecer nada relevante em troca também pairou sobre a Pixar. A Disney encomendou a continuação de Toy Story imediatamente. O plano era seguir os passos dos outros longas animados e fazer um lançamento direto em vídeo. Afinal, se o público pagou para ver os personagens uma vez e gostou, nada mais natural que fazer isso de novo. Não precisa pensar muito no figurino, muitos cenários já estão construídos (no computador), e, principalmente, não é preciso gastar vinte minutos apresentando personagens, então a ação pode começar desde o primeiro minuto. Toy Story 2 estava sendo preparado para ser um Jaws 4, mas depois de muito retrabalho e brigas com a Disney, acabou se tornando um Terminator 2. Não havia nada de familiar com o primeiro filme. Ambientes foram expandidos (a abertura do filme, com Buzz no universo do videogame vale, sozinha, o preço do ingresso), personagens carismáticos e relevantes foram adicionados, e uma trama consideravelmente mais complexa que a original fizeram com que Toy Story 2 fosse tão ― ou mais ― bem-sucedido quanto seu antecessor, tanto para a crítica quanto para os bolsos da Disney.
O que se segue é uma história de mais oito longas e oito sucessos retumbantes do estúdio. Finding Nemo, Monsters Inc. e Wall-E estão em praticamente todas as listas de melhores animações dos últimos 60 anos e se tornaram verdadeiros clássicos, combinando sensibilidade artística e apelo com o público. Ao incentivar a criatividade e a qualidade das histórias com sessões e mais sessões de apresentações internas do filme com cenas-chave em pequenos desenhos colados na parede (um storyboard rudimentar), os criadores podiam verificar o ritmo e os potenciais erros do projeto. Essa visão do todo desde o início é crucial para explicar o sucesso das produções do estúdio. Pode verificar: não há um frame desperdiçado em nenhum dos filmes da Pixar. Cada elemento tem um propósito bem definido, seja na construção dos personagens, seja na arquitetura da história. Claro que também ajuda ter um time de profissionais extremamente talentosos, muitos deles saídos da mesma faculdade, a CalArts (foi onde John Lasseter conheceu Brad Bird, que mais tarde dirigiria o fantástico The Incredibles).
A força criativa da Pixar combinada com o poder de distribuição e a enorme força do nome Disney pareciam imbatíveis. Menos pelo tipo de acordo firmado em 1993, que dava direito de produção e de personagens à Casa do Mickey, mesmo sem o envolvimento da Pixar. Em 2004, atritos sobre termos desse contrato colocaram Steve Jobs e o então CEO da Disney, Michael Eisner, em franca inimizade, e as negociações foram suspensas por meses. A Disney encomendou a continuação de Toy Story para seu estúdio interno, o Circle 7, mas as pressões internas (e, imagino, uma dose de bom-senso dos membros-diretores da Disney) levaram à renúncia de Michael Eisner no final de 2005. As negociações com a Pixar foram retomadas, ao ponto de, em 2006, a Disney adquirir o estúdio por inteiro, sob condições de manter sua estrutura e independência, além de colocar John Lasseter no controle e Ed Catmull na presidência da Walt Disney Animation, e Steve Jobs, agora o maior acionista da Disney, com mais ações que o próprio herdeiro de Walt, Roy Disney, na mesa de diretores.
Muitas mudanças nos projetos em andamento da Disney (Bolt foi consideravelmente alterado) ocorreram com a chegada de Lasseter. Mas, mais importante, Toy Story 3 foi salvo da sina de se tornar um filme mediano. Lasseter puxou a tomada da produção na Disney e a reiniciou do zero em Emmeryville, com o co-diretor do segundo filme (e montador do primeiro) Lee Unkrich na direção.
O resultado pode ser visto nos cinemas, e é exatamente o que se pode esperar da Pixar: uma história extremamente bem contada, que envolve o espectador, surpreende e emociona sem cair no maniqueísmo. Outra vez, os ambientes foram expandidos, personagens novos e interessantes aparecem (tente não rir do boneco Ken. Eu gargalhei em determinada piada), e todos os temas de autorrealização, infância (e consequente saída dela), amizade e lealdade dos outros filmes estão ali, temperados com mais humor e uma técnica impecável.
Encontramos os brinquedos guardados em um baú do quarto de um Andy de 17 anos, prestes a sair para a faculdade. Como nos outros filmes, Andy não é bom nem mau. Os brinquedos cumprem seu papel na existência ao servi-lo (brinquedos servem para serem brincados, diria Jess no segundo filme), mas já não são mais páreo para os interesses mais adultos do garoto. Passar o resto de suas vidas úteis protegidos (e esquecidos) num sótão ou serem doados para uma creche onde serão compartilhados por dezenas de crianças potencialmente destrutivas é um dos vários dilemas que o filme apresenta, todos verossímeis e bastante análogos à nossa própria existência. Que apego devo ter com as coisas (e pessoas) que me tornaram o que sou, mas que não são mais adequadas para mim? Ou o que vale mais a pena: amar e arriscar uma cicatriz ou manter uma distância emocional segura e assim garantir o bem-estar geral?
O elenco de vozes continua competente, todos os atores voltam a seus papéis (inclusive John Morris, que dublou Andy em todos os filmes e cresceu com o personagem). Michael Keaton estreia fazendo a voz do boneco Ken e o veterano Ned Beatty faz o urso Lotso, o velho anfitrião da creche Sunnyside, que ainda não perdeu o cheirinho de morango.
O 3D é usado com bastante parcimônia, como é praxe da Pixar, o que o torna um elemento integrante do filme, e não um chamariz. Há profundidade em absolutamente todos os planos, mas nunca o olho força o foco em algo que não está lá, como fazem outros filmes 3D que insistem em jogar elementos no nosso rosto. A tela se torna um palco, ao invés de um trampolim. Vale mencionar que, ao contrário de outras projeções 3D, a luminosidade do projetor estava ajustada perfeitamente, e o filme não ficou escuro com o uso dos óculos 3D (recentemente vi Clash of the Titans num cinema da mesma rede, e que sofreu terrivelmente deste mal. Ainda não sei se a culpa é do projecionista ou da cópia).
Dito tudo isso, Toy Story 3 não tem a profundidade filosófica de um Wall-E, nem o lirismo de um Up, mas mesmo assim está eras à frente de qualquer animação de qualquer outro estúdio tanto em qualidade técnica quanto no extremo cuidado com a história. E, como todo filme da Pixar, tem a incrível capacidade de entreter e emocionar igualmente qualquer ser com um coração batendo.
Em trinta anos, provavelmente nos esqueceremos completamente de Shrek e Espanta-Tubarões (viu só, você já nem lembrava deste último, e ele não fez nem seis anos!), mas ainda passaremos para nossos netos e bisnetos os verdadeiros clássicos do cinema de animação. Lá estarão os Disney da primeira metade do século XX, os sensacionais curtas da Warner do Chuck Jones e de seus revolucionários colegas do Termite Terrace (outra conjunção astral de talentos que merece um estudo aprofundado), as produções do Studio Ghibli do Hayao Miyasaki e, sem dúvida nenhuma, o produto das mentes criativas de Emmeryville, CA, frutos da mentalidade inovadora das empresas de tecnologia do Sillicon Valley com a reverência a esses mesmos grandes mestres da animação. Não é todo dia que um grupo talentoso como o da Pixar aparece. Mais raro ainda é aparecer com tanto sucesso. Que o lampejo de autoconsciência do Universo não se apague tão cedo.
* O debate sobre a primazia do brasileiro Cassiopéia pelo título de primeiro longa totalmente animado por computador se provou inútil, uma vez que Toy Story saiu primeiro (e influenciou todo mundo). O fato de modelos de argila dos personagens terem sido produzidos para a modelagem no computador se tornou praxe na área, invalidando qualquer reclamação de que isso não seria 100% produzido no computador.
Excelente análise, e concordo piamente com tudo sobre a Pixar e "Toy Story". Costumo dizer que a Dreamworks e derivados fazem filmes em animação, enquanto a Pixar faz filme, e ponto final.
Adorei a crítica! Mas peraí! Não dá para não rir do Ken... Metrossexual de plástico foi o fim da picada! Paguei mico no cinema de tanto rir. E adorei mesmo a temática. A cena final do Andy doando a turma do Toy (com o Woody no meio) para a garotinha e "entrando na dela" é tocante. Como diria Babysauro: "De novo!"
E, realmente, no 3D o filme não ficou escuro. "Clash of Titans" ficou péssimo!