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Quarta-feira, 21/7/2010
Entrando para ganhar
Celso A. Uequed Pitol
+ de 4500 Acessos


LIANA TIMM© (http://timm.art.br/)

Quando perguntaram a Sebastião Lazaroni como a seleção brasileira iria se portar durante a Copa de 90, a resposta veio rápido: "Não vamos jogar bonito, para divertir os europeus. Vamos jogar para ganhar". Pela primeira vez na história, a seleção brasileira aderia ao esquema 3-5-2, oficialmente descoberto pelos dinamarqueses no início daquela década mas usado na prática desde que o futebol existe. Parecia simples, mas funcionava com precisão de metrônomo: os três zagueiros fixos cuidavam, com vantagem, dos dois atacantes adversários; o meio-campo, composto por três volantes com muito pulmão, espírito de luta e organização tática, destruíam as jogadas inimigas no nascedouro. Nos dois lados do campo, os alas substituíam os velhos laterais e eram responsáveis pelas jogadas de ataque da equipe, levando a bola pelos flancos até o campo inimigo onde dois centroavantes e um ou outro meio-campista esperavam os cruzamentos.

Eficiência na destruição, velocidade no contra-ataque. Era o esquema dos vencedores. Os argentinos, os italianos, os alemães e todos aqueles que venciam jogavam assim. Os brasileiros não ― e perdiam. Nosso 4-4-2 sem muita rigidez, com meias avançados, volantes que saíam para o jogo e pouca combatividade, era presa fácil para essa verdadeira máquina de ganhar títulos. Não era nenhuma novidade. Tratava-se da boa e velha retranca, devidamente polida e adaptada para a discussão futebolística mais elevada, onde poderia mostrar-se de forma a não fazer os entendidos torcerem o nariz. Um esquema cínico, simples, quase antidesportivo, mas que funcionava. Quem queria entrar para ganhar jogaria dessa forma.

É importante contextualizarmos as palavras de Lazaroni. No final dos anos 80, o futebol brasileiro vivia uma crise identitária tão grave quanto a crise econômica que assolava o país. A Seleção vinha de duas Copas onde uma talentosíssima geração de jogadores havia fracassado jogando um futebol encantador. Em 1982, perdemos para a Itália, da maneira que todos sabem. Em 1986, para a França, nos pênaltis. Na primeira, dizia-se, faltou-nos organização na defesa. Na segunda, dizia-se, faltou frieza, compenetração, competência: nossos dois maiores craques ― Zico e Sócrates ― erraram suas cobranças, um no tempo normal, outro na disputa pós-jogo. Nos dois casos, para seleções européias. Nos dois casos, para não-favoritos. Nos dois casos, para seleções que tinham, ou aparentavam ter, aquilo que nós, por uma série de razões, aparentávamos não ter: organização e frieza. Nossos malabarismos com a bola, nossos jogadores-artistas, nossa mentalidade naturalmente ofensiva, nosso jogo, enfim, divertido, era impiedosamente massacrado quando enfrentava a sério equipes européias que jogavam a sério. Pela primeira vez, nós, brasileiros, nos víamos como aprendizes em matéria futebolística. Era necessário mudar. Era necessário ser como eles: do ponto de vista tático, organizados e sistemáticos; do ponto de vista psicológico, compenetrados e frios quando necessário. Ao fim de tudo, vencedores.

A mudança de esquema de jogo cuidava do aspecto tático. No campo psicológico, a frase de Lazaroni trazia uma carta de intenções sobre a nova mentalidade que deveria impulsionar os jogadores brasileiros: não jogar para divertir os outros. Estávamos cansados de receber sorrisos de superioridade de quem nos vencia e, ante o nosso choro de perdedores crônicos, dizia: "que agradáveis são esses brasileiros!". Estávamos cansados da condescendência, dos consolos, do lamentar irônico, dos tapinhas nas costas. Não queríamos mais ser agradáveis, simpáticos, sorridentes, bobos da corte do futebol. A alegria do futebol brasileiro era um chavão que repetíamos sem compreender o significado profundo que encerrava. A tal alegria era nada menos do que a irresponsabilidade, a incapacidade de organizar-se, o riso no momento errado, a piada fora de hora, a incompetência, a derrota. Não queríamos ser alegres e divertir os outros com a nossa alegria. Queríamos ser detestados, odiados, temidos e não amados, seguindo a clássica lição de Maquiavel. O velho homem cordial de Sérgio Buarque precisava ser combatido dentro de campo como se fosse ele o nosso verdadeiro inimigo, e não a seleção adversária. Era isso o que Lazaroni queria para a seleção brasileira, para o Brasil e para os brasileiros. Era um novo momento, e este momento merecia um nome para defini-lo, algo marcante, que deixasse uma ideia para as gerações futuras do que foi aquela experiência. Lazaroni tinha um: a Era Dunga. O recado era claro: Dunga era o meio-campista aplicado, marcador, bom no lançamento, fraco na condução de bola e péssimo em termos de carisma. Era o símbolo do que deveríamos ser no futuro.

Todos sabem como isso acabou. O Brasil jogou a Copa de 1990 de maneira sistemática, ordenada e rígida. Venceu os três primeiros jogos pelo placar mínimo. Nas oitavas de final, jogou contra a Argentina e perdeu, também pelo placar mínimo. Jogou para ganhar, não divertiu ninguém, não arrancou sorrisos, condescendência, tapinha nas costas, nada disso. Não arrancou sequer lamentos. Era como se a seleção brasileira não tivesse participado do torneio. Saímos da maneira como entramos: sem título e sem alegria. Ao menos, um dos objetivos foi cumprido.

Naquele mesmo ano de 1990, o recém-empossado presidente Collor começava a dar corpo ao conjunto de medidas que, com a promessa de alavancar a economia, acabaria por conduzi-la à ruína. O título de "caçador de marajás" conduzia uma candidatura que prometia transformar o destrambelhado Brasil da virada da década na potência que os militares, vinte anos antes, prometiam que iria se tornar. Afinado com a tendência mundial da época, Collor vinha com uma agenda liberal que incluía abrir o fechado mercado brasileiro ao estrangeiro e privatizar empresas públicas. Era cercado de nomes respeitáveis, como Zico, José Guilherme Merquior ― que, dizem, escreveu parte de seu discurso de posse ―, José Lutzenberger, José Goldemberg e muitos outros. Para a economia, tinha, à maneira do personagem de Maurício de Sousa, um plano infalível. Um plano proporcional ao ego de seu criador, reconhecidamente inflado. Era preciso dar-lhe um nome. Como Lazaroni, o presidente recém-eleito pensou em algo marcante, que deixasse uma ideia para as gerações futuras do que foi aquela experiência: o Plano Collor.

Isso também todos sabem como acabou. Os dois homens com promessas mirabolantes ― Collor e Lazaroni ― deixaram a torcida e o eleitorado (o que são, em termos anímicos, praticamente a mesma coisa) na mesma situação. A autoestima do país, naturalmente já um tanto baixa e abalada pelos fracassos no futebol, ficou positivamente destruída. A Era Dunga e o Plano Collor naufragaram de braços dados. O Brasil, mais uma vez, perdia.

Muito se passou desde então. O Brasil ganhou e perdeu várias vezes, recebeu o influxo de novas ideias, aceitou novos paradigmas, trilhou novos rumos sem, no entanto, trilhá-los sob um nome marcante ou um slogan que deixasse na memória de todos a suposta grandiosidade daquele momento. Caminhou sem lenço e sem documento. Perdeu e ganhou assim, como se costuma perder e ganhar.

Veio, por fim, o fracasso da Copa de 2006. Movido a festa, jogadores acima do peso e da idade desejável, badalação midiática e descuido, o Brasil voltava a perder. Acendeu-nos o alerta. Foi chamado Dunga ― sim, o mesmo que deu nome à seleção de Lazaroni, que era combativo, lutador e pouco carismático, o símbolo de uma era de fracassos. E era isso que, supunha-se, precisava a seleção brasileira. Alguém combativo, lutador e pouco carismático, capaz de pôr aquele bando de Macunaímas tardios nos eixos e conquistar o hexa. A Era Dunga retornaria? Não exatamente.

Após levantar a taça em 1994 e mandar um recado bem direto a todos os seus críticos, o jogador já estava reabilitado perante a crítica e o público e passou a ser visto como um exemplo de liderança. E um líder precisa comandar em direção à vitória. Dunga estava ali, também, para jogar para ganhar. O esquema de jogo da seleção brasileira, simples, básico e direto como as respostas do treinador nas coletivas, seria, na teoria, desmontado por qualquer treinador experiente. Jogo tão somente de contra-ataque, explorando a velocidade do excelente lateral-direito, de um meia-atacante especialista em arrancadas verticais e o faro de gol de um centroavante mortal quando sozinho na área, a Seleção Brasileira assemelhava-se a uma velha máquina de pinball, com os jogadores de defesa (na prática, sete: os quatro defensores, mais o trio de volantes) funcionando como palhetas enquanto Kaká e Maicon funcionavam como os lançadores. Essa seleção conseguiu em 2010 a proeza de ser ainda mais detestada pela crítica do que a de 1990. Se aquela ainda trazia um Romário em ascensão, um Renato Gaúcho, um Tita, um Bismarck, nenhum, rigorosamente nenhum jogador dos 22 convocados de Dunga se notabilizava pela criatividade, a qual até atrapalharia a mecânica de jogo (termo que, aqui, ganha contornos quase literais) da máquina verde e amarela. Um meia cadenciador, driblador, criativo ― alegre? ― diminuiria a precisão quase metronômica das jogadas brasileiras. Precisão que falhou quando mais precisou-se dela.

O que aconteceu com a seleção, mais uma vez, todos sabemos. E Dunga foi execrado pela crítica e apoiado pela população. Mais de 70% dos brasileiros estavam com ele quando o Brasil foi eliminado e muitos, ainda hoje, o veem como perseguido pela mídia. O Brasil o entende ― porque o Brasil de 2010 é, em boa parte, igual à Seleção que ele formou. O Brasil de 2010 não é alegre e não deseja sê-lo. O Brasil de 2010 quer-se inserido no mundo globalizado não como espectador ou receptor, mas como agente direto, que media conflitos, que dá exemplos, que é co-artífice deste mesmo mundo, pícaro da sociedade racional, dessacralizada, burocratizada e tudo o mais que um senhor alemão chamado Max Weber já apontava há um século. O Brasil de 2010 comete acintes ambientais com a desculpa de que não se pode impedir o progresso, ao melhor estilo, vejam só, de George W. Bush. O Brasil de 2010 crê, como Celso Amorim, que apoiar ditadores é justificável pelo argumento de que "negócios são negócios" e que pregação moralista não leva a nada.

O Brasil de 2010 referenda esta postura, com aprovação semelhante ― não por coincidência ― à do Dunga pré-eliminação. O Brasil de 2010 não quer mais o homem cordial, afinal, uma de suas características basilares, tal como as descreveu Sérgio Buarque, é a confusão entre os domínios público e privado, entre o mundo dos negócios e o mundo das relações afetivas, ligada à dificuldade em aceitar um distanciamento racional entre a vida econômica e o emocional-afetivo, consubstanciada na conhecida observação dos comerciantes holandeses do século XVII ― um dos exemplos mais acabados de agentes econômicos racionais ― de que, no Brasil, era impossível fazer negócios com um brasileiro sem ser antes amigo dele. Isto já não existe. Negócios são negócios e, no jogo, como nos negócios, entra-se para ganhar e não para fazer bonito. Lazaroni já não precisa dizer para não divertirmos os europeus: só o fazemos por dinheiro. O Brasil de hoje é o Brasil de Dunga, de Lazaroni e de outros,dentro e fora do futebol. A questão que fica é: quantas vezes mais precisaremos perder entrando para ganhar à maneira dos outros, para podermos, finalmente, admitir ― ou descobrir, ou redescobrir ― que podemos ganhar, como tantas vezes já ganhamos, sendo apenas nós mesmos?


Celso A. Uequed Pitol
São Paulo, 21/7/2010

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