Rimbaud, biografia do poeta maldito | Jardel Dias Cavalcanti | Digestivo Cultural

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COLUNAS

Terça-feira, 10/8/2010
Rimbaud, biografia do poeta maldito
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 21600 Acessos

Uma espécie de filho maldito de Baudelaire, o prenunciador do surrealismo, o mestre espiritual de Jim Morrison, o poeta do desregramento de todos os sentidos adorado pelos beatniks, o menino quase sobre-humano, segundo Proust. Rimbaud tornou-se uma lenda literária ainda vivo, embora tenha deixado de se interessar por poesia já aos 19 anos. Qualquer pessoa que queira mergulhar no que há de mais radical e imaginativo em poesia moderna deve passar por ele.

Uma forma bem interessante de se aproximar de Rimbaud é lendo a biografia Rimbaud ― A vida dupla de um rebelde (Companhia das Letras, 2010, 192 págs.), de Edmund White, lançado este ano pela Companhia das Letras. White já havia escrito as biografias de Jean Genet, outro escritor maldito, e também a do romancista Marcel Proust. Seu relato da vida de Rimbaud cruza dados do desenvolvimento de sua carreira como poeta, dos 15 aos 19 anos, com seus desvarios homoeróticos com Paul Verlaine, sua eterna postura rebelde e antiburguesa e, finalmente, relata o abandono da carreira literária e sua busca por riqueza e posterior destruição e morte no período em que viveu no continente que chamou em suas derradeiras cartas de "tediosa África".

Ainda bem jovem Rimbaud deixou cair em suas mãos As flores do mal, o livro de poesias de Charles Baudelaire. Jamais voltaria a ser o mesmo. Também inebriou-se com a leitura das poesias de Victor Hugo e suas obras Os miseráveis e Os trabalhadores do mar, tornando-se ainda companheiro literário e sexual do poeta Paul Verlaine. Baudelaire, Hugo e Verlaine: ingredientes perigosos transformados em um verdadeiro coquetel molotov pelo jovem poeta de Charleville.

Segundo White, Rimbaud transportou a novas alturas "a nostalgia do ignóbil" de Baudelaire. E a prova evidente disso é o poema "Soneto do buraco do cu" ("Sonnet du trou du cul"), escrito com seu parceiro de bebedeiras e cama, Verlaine (que escreveu os primeiro oito versos, enquanto Rimbaud escreveu os últimos seis). Há nesse poema a direta intenção de ofensa contra o soneto tradicional com seus temas elevados. É um poema que pode ser considerado uma espécie de irmão espiritual de alguns poemas de Baudelaire, principalmente o denominado "A carniça".

Eis o poema "Soneto do buraco do cu":

"Obscuro e enrugado como um cravo roxo,
Ele respira, humildemente escondido em meio ao musgo
Úmido ainda de amor que segue a doce fuga
Das nádegas brancas até o âmago de sua orla.

Filamentos parecidos a lágrimas de leite
Choraram, sob o vento cruel que os repele,
Através dos pequenos coágulos de marga raiva
Para irem se perder onde o declive os chamava.

Meu sonho frequentemente se colou à sua ventosa;
Minh´alma, com ciúmes do coito material,
Dele fez seu lacrimário fulvo e seu ninho e soluços.

É a oliva desfalecida, e a flauta carinhosa;
É o tubo por onde desce a celeste pralina:
Canaã feminino encerrado nas umidades!"

Rimbaud foi um rebelde não só do ponto de vista poético, mas também na forma existencial de se opor aos comportamentos sociais burgueses. Decidiu por uma vida desregrada, consumindo-se numa aventura homossexual pública com Verlaine, que viria a destruir seu casamento e terminaria causando inúmeros problemas aos dois poetas, como quando tomado de fúria Verlaine colocou fogo na cabeleira de sua mulher e quando atirou enlouquecidamente seu próprio filho ainda bebê na parede. E ainda, entre outras coisas, a prisão do desesperado Verlaine ao disparar um tiro contra Rimbaud, que o ameaçava deixar.

Entregando-se ao mau comportamento entre o meio literário parisiense, acabou sendo acusado de irresponsável, agressivo, intragável e boca-suja. Fazendo uso de haxixe e absinto praticou aquilo que exigia do verdadeiro poeta: "o longo, imenso e sistemático desregramento de todos os sentidos". Sua própria mãe não o via senão como um cabeludo, piolhento, arruaceiro, blasfemo, vagabundo, desrespeitoso de todas as formas de ordens. Seu comportamento antipático, obsceno e grosseiro talvez tenha sido aprendido com velhos anarquistas que conheceu, sugere White.

Em meio às turbulências do seu cotidiano desregrado, não deixava de escrever seus poemas, desafiando constantemente um ambiente literário francês ainda conservador, proclamando como ordem do dia "cuspir no sagrado" e "injuriar o belo".

A ideia de uma espécie de inspiração grotesca seria o componente vital de sua poesia. Seu professor ginasial Izambard relembrou anos mais tarde seu brilhante aluno recitando o seguinte trecho dos ensaios de Montaigne: "O poeta, sentado sobre o tripé das musas, cospe furiosamente tudo o que lhe entra pela boca, agindo como uma gárgula, e dele saem coisas de toda sorte diferente, substâncias contrárias num fluxo irregular".

O texto acima não poderia ser melhor para definir a imagem da poesia do autor de Uma temporada no inferno e "O barco bêbado". Sua "Carta aos videntes" propõe uma ruptura radical com o passado da poesia. Para Rimbaud, resume White, "o poeta é um vidente que conquista seus poderes visionários pelo desregramento de todos os sentidos através do álcool, das drogas, da loucura, da doença e do crime. Assim como Baudelaire havia falado das virtudes da embriaguez, que permite ao individuo fundir-se com o mundo a sua volta e com a humanidade universal, de igual modo Rimbaud atribui a lucidez sobrenatural do poeta a tudo o que desregula os hábitos embotados da percepção".

Rimbaud tornou a poesia uma espécie de parteira das sensações capaz de registrar tudo o que seus sentidos detectem, intensificando o brilho dos fatos através da linguagem ousada e entrecortada de sua poesia. Essa poesia objetiva de pura sensação, diz White, é um impulso que Rimbaud corporificou à perfeição em seu famoso soneto "Vogais".

No poema "O barco bêbado", com cem versos, Rimbaud libera a poesia de todas as regras clássicas, levando a linguagem especificamente a ser como o narrador do poema, que é o barco sem leme, errante, bêbado, partindo sem rumo em direção ao desconhecido. Estava colocado em prática o verso livre. Diz alguns versos do poema:

"E desde logo me banhei no Poema
do Mar, infuso de astros, e lactescente,
devorando os azuis verdes; onde, flutuação pálida
e arrebatadora, um afogado pensativo às vezes vaga."

O poema compreende rimas descontraídas, imagens surpreendentes e sintaxe intrincada. "Cada elemento do poema de Rimbaud ― semântico, rítmico, linguístico é calculado para desestabilizar o leitor (...) e falar diretamente a todos os seus sentidos", diz White.

Dando continuidade e renovando Baudelaire, Rimbaud praticamente inventa o poema em prosa. Segundo White, "Baudelaire já tinha feito experimentos com poemas em prosa, mas Rimbaud iria descartar o aspecto informal, descritivo, anedótico daquelas peças e substituí-lo por um tipo órfico de enunciado que era mais visionário e mais difícil, mais frio e sublime. Também seria lírica e condensada, visual ao extremo e intrincadamente tecida".

Após fazer 19 anos Rimbaud despediu-se para sempre da literatura. "Considerava seus anos de criatividade, dos quinze aos dezenove, um tempo de bebedeiras, um período de escândalo homossexual, de arrogância e rebeldia que não levaram a nada".

Desaparecido da Europa, Rimbaud tornou-se uma lenda, principalmente depois da publicação em 1883 de Les poètes maudits, livro de Verlaine sobre Rimbaud, Mallarmé e Tristan Corbière. Em 1887, chegou a Paris a falsa notícia da morte de Rimbaud. Verlaine prontamente escreve um belo poema:

"Não quero crer em nada disso. Morto, vós,
Tu, deus entre os semideuses!
Os que o dizem estão loucos!
Morto, meu grande pecado radioso (...)"

O resto de sua curta existência se passa entre viagens a lugares exóticos e distantes da Europa, em busca de dinheiro, através, principalmente, do tráfico de armas, do comércio internacional de especiarias e como intérprete comercial.

Segundo White, a lenda de que Rimbaud era traficante de escravos na África não é verdadeira, mesmo a escravidão e o comércio de escravos sendo fatos corriqueiros na África (prática especialmente feita por brancos árabes). Rimbaud viveu ali como comerciante bem-sucedido, mas ainda assim considerava a África o lugar mais atroz do mundo, chegando a confessar à sua mãe que viver um ano naquele inferno equivalia a viver cinco anos em qualquer outro lugar. Apesar de seu ódio à África, o poeta jamais voltou para a França, senão para se tratar e morrer.

Com a perna gangrenada e depois amputada voltou à sua cidade natal, mas não conseguiu retornar ao continente africano. Veio a morrer pouco depois, aos 37 anos, em 1891, no momento de sua segunda internação em Marselha, quando um enorme tumor entre a coxa e o estômago lhe foi fatal.

Há boas traduções de Rimbaud no Brasil, como as de Lêdo Ivo e Rodrigo Garcia Lopes e Mauricio Arruda Mendonça, sendo especialmente brilhantes as de Augusto de Campos, em Rimbaud Livre. E para quem quiser ver a trajetória de Rimbaud e Verlaine no cinema, pode assistir ao excelente filme Eclipse de uma paixão, com o belo Leonardo DiCaprio.

Mas não deixe de ler a instigante biografia escrita com grande sensibilidade por Edmund White, formidável encontro com o satânico e impertinente menino rebelde que mudou o rumo da poesia na Europa.

Nota do Editor
Leia também "O comerciante abissínio" e "O comerciante abissínio II".

Para ir além






Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 10/8/2010

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