Nada como abrir a caixa de mensagens (no computador, no celular ou mesmo aquela incrustada no muro de casa) e ler uma boa notícia. É um evento, uma delícia, um suspiro aliviante. Risinhos caem pelos cantos da boca. Um ventinho sopra a franja de que tem. Ah! (E este "ah" tem que ter "H".) Como a vida é boa.
E outro dia, não faz muito tempo, abri um e-mail cheio dessas delicinhas. Era o organizador do livro Como se não houvesse amanhã (Record, 2010, 160 págs.), o corajoso e empreendedor carioca Henrique Rodrigues, dando a boa nova. Em poucas e intensas linhas, dizia ele que o livro já ia para a terceira edição (rapidíssimo para uma obra de literatura escrita por jovens autores contemporâneos) e que fora aprovado pelos professores, ou seja, figuraria nas listas a serem lidas nas salas de aula, por alunos sedentos por contos.
De uma só tacada, a feliz editora dona do passe da coletânea deveria imprimir aí mais de quinze mil exemplares da obra para ser vendida ao governo e chegar aos professores. Estes, por sua vez, devem arrancar de seus lumes criativos as melhores atividades possíveis para que os alunos leiam mesmo o material e curtam a relação música/conto proposta ali.
Melhor alinhavar isto direito. É que Como se não houvesse amanhã é uma coletânea de contos de autores contemporâneos (todos vivos, diga-se de passagem). Os contos são inspirados (às vezes mais, às vezes menos do que isso) em músicas da banda Legião Urbana, uma das mais marcantes do rock nacional das últimas décadas. Cada autor, a convite do organizador, escolheu um hit (ou menos hit) e arranjou seu método de escrever um conto baseado na canção. Houve quem pinçasse logo "Eduardo e Mônica", faixa de trabalho do álbum Dois, conhecida até mesmo dos filhos (quiçá netos) da geração que curtiu o lançamento do vinil de capa bege nos anos 1980. É claro que os contos que se inspiraram em canções dessa estirpe são mais citados nas matérias de revistas e jornais.
Outros autores atacaram de músicas de fã, ou seja, aquelas que o grande público não conheceu, mas que tocaram nas vitrolas dos fãs de carteirinha. É o caso de "Andréa Dória", que escolhi por me lembrar dos momentos de emoção que a letra me provocava e das infinitas frases copiadas nas agendas e nos diários.
Que articulações um projeto assim sugere aos professores (mais de quinze mil) e suas salas de aula? Por que a literatura anda precisando destas fantasias ou destes outros trajes? Ou ela sempre precisou?
Para se ter uma ideia, Henrique Rodrigues anda recebendo e-mails de professores que vêm lhe contar da adesão dos alunos à leitura da obra. Depoimentos de leitores apaixonados pela Legião, antes a Urbana, agora a de autores que ali estão, como se tocassem novamente, com outros instrumentos, aquelas canções que Renato Russo disparava por aí. Como se não houvesse amanhã conquistou não apenas a terceira edição, mas o primeiro lugar na escolha dos professores, deixando em segundo um Nelson Motta. E mais: desbancando top hits como Manoel de Barros e Stanislaw Ponte Preta.
Como poderíamos ler esse acontecimento? É claro: não apenas como uma trilha que liga leitores a livros, o que já é, sem dúvida, ótimo, mas como uma trilha tortuosa que faz esse milagre aí. Explico: tortuosa porque somos um país de poucos livros por cabeça/ano. Para que a média suba um pouquinho, é preciso juntar todo tipo de leitura no mesmo bolo, o que não é incomum nas pesquisas sobre o tema, mesmo em outros países. Lemos jornais, revistas, quadrinhos, a Bíblia, o Corão, os Vedas, flyer, panfleto, e-mail e livros (de autoajuda, de receitas e de literatura, desde que ela se pareça com outra coisa). É isso?
Se somos um país de poucos livros/cabeça/ano, por que é que somos uma das maiores potências editoriais do mundo? É isso mesmo. Coisa de quinto ou oitavo lugar, a depender de quem fez a pesquisa. Como é que pode? Mas pode. É que o governo compra a maior parte dos livros e os distribui aos leitores (quase leitores, pseudoleitores, semileitores, megaleitores, hiperleitores, hipoleitores etc.). É mais ou menos como aquela cobra que come o próprio rabo. Mas até que funciona. Pelo menos os professores podem escolher os livros que acham mais bacanas e levá-los para as salas de aula. Ou emprestá-los aos alunos. Ou produzir mais contos sob a influência destes. Ou pensar projetos com foco na música (e a literatura pega os adolescentes de assalto). Pelo menos isto: a escola continua funcionando como um forte (e quase solitário) espaço no qual as pessoas têm seus rudimentos de cultura literária (alguns diriam letramento literário).
Ao menos as esferas do governo implementam planos como o Biblioteca do Professor ou projetos que visam a forçar essa rede livro-leitor-leitura, que deveria ser um ciclo infinito (e nem sempre é). E por que eu disse "ao menos"? Porque, como todo mundo não se cansa de dizer, em média, o professor brasileiro não tem o melhor salário do mundo. Comprar livro fica depois, bem depois, de pagar as contas.
Até que Como se não houvesse amanhã também não é dos livros mais caros do planeta. Na Livraria Cultura, ele custa R$ 32,90, mas sai, na promoção, por R$ 26,32. Como não bebo cerveja, preciso consultar alguém para ver como fica a conversão: isso dá umas dez ou doze cervejas, dependendo do boteco? É por aí. Questão de decidir o que é melhor para o momento.
O que os jovens leitores querem com este livro? O que o professor vislumbrou? Aposto que o raciocínio foi algo assim: "vou articular os contos às canções e meus alunos ficarão mais interessados" ou, em toscas palavras, "eba, vou poder enganar a moçada. Pensam que vão ouvir música, mas estarão lendo".
Mas o fato é que há quem realmente goste do livro, inclusive entre a garotada. No meio da multidão, eis que uma menina aponta a bela narrativa baseada em "Quando o sol bater na janela do seu quarto". Ou em "Pais e filhos", um quase blues que emociona. E um outro leitor, mais proficiente, posta em seu blog um exercício literário inspirado no livro. Ele percebe a falta da canção "Índios" e dá sua contribuição.
Mas minha questão não passa de uma digressão. Meu título não é bem uma pergunta (e seria retórica, se fosse). É apenas um desses pensamentos que passam rapidinho e se vão. É preciso despistar a literatura, vesti-la com canções, fantasias, adornos, badulaques, apetrechos, penduricalhos, maquiagens, berloques, máscara e touca ninja. Afinal, ninguém quer parar para contemplar, ouvir mentalmente a leitura dos textos literários. Dói menos quando a leitura se parece com outra coisa.
Estas estatísticas de livros per capita são puro engodo. Sem diferenciar os diversos nichos que geram publicações, obras paradidáticas acabam sendo registradas como obra literária. Literatura tem alguma relação com livro, mas seu limite é o propósito. Outra questão interessante é se o autor deve escrever motivado pelo mercado leitor ou deve buscar conformar a sua obra? Escrever em cima das demandas criadas por um projeto editorial é uma coisa, conformar uma peça literária baseando-se no apetite leitor fica parecendo clichê de um certo escritor que dá expediente na Academia Brasileira de Letras...