Toda vez que entro em um livro, cumpro um certo ritual, como se entrasse no mar, em um rio caudaloso ou em qualquer coisa que mereça cuidado e vênia. Não é de qualquer jeito que se entra num livro. Não é assim, sem prestar atenção a nada, como se se atravessasse uma rua erma. Para entrar em um livro é preciso medir a profundidade das palavras, olhar bem adiante e dimensionar, só com os primeiros passos, até onde se pode ir. Um livro pode afogar uma pessoa. E o afogamento em um livro não tem salvação, não tem resgate, não tem respiração boca a boca.
Quando me refiro a entrar em um livro, não penso apenas no dispositivo físico, aquele tijolinho de capa e miolo que lançam por aí, ultimamente, a torto e a direito. Não me refiro também a estes novos dispositivos sem páginas de folhear (no máximo, emulações malfeitas delas). Quando falo em livro penso, de fato, em um texto. É esse texto que tira o ar do leitor.
Ficar sem ar pode ser muito ruim. Pode ser a morte. Mas ficar sem ar pode ser emoção, pode ser um ataque de ansiedade. É desta última que estou falando, quando penso nos livros que li e que me lavaram a alma. E os fios da minha lembrança foram todos fisgados pelo livro de Lígia Cademartori, O professor e a literatura (Autêntica, 2009, 128 págs.), não por acaso vencedor do prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) de 2010.
Lá vai a autora pescando umas piabas da minha memória de leitora. Infância, adolescência e vida adulta. Aí já não tinha volta. Lá vem a autora me relembrar os livros que me fizeram subir os degraus da leitura. Naquela época (que nem está tão longe), as coleções eram outras e bem mais fininhas. O título O escaravelho do diabo causa sensação em muita gente da minha idade. Quem se esqueceu? E se eu disser que, quando conheci o escritor Marçal Aquino, meu frisson foi por causa do livro dele na coleção Vaga-Lume, e não por conta de livros mais recentes ou filmes do cinemão policial nacional?
Lígia Cademartori consegue uma façanha: falar ao professor (de literatura? Ou outro) sobre literatura e leitura, mas com uma linguagem simples, mas tão simples, que a gente começa a conversar com ela, a fazer anotações nas beiradas da página e, de repente, é como se tomássemos café na cozinha de casa. E a ideia é mesmo essa, já que o livro é parte de uma coleção (que deve crescer) chamada "Conversas com o professor". Lá vai Ligia Cademartori contando uns pedaços de uns livros clássicos, só pra a gente ficar com água na boca.
Além de ser uma obra que se lê "de uma sentada", como se diz aqui em Minas, a autora puxa mil fios da lembrança. E isso é um exercício gostoso. Quais são nossos livros infantis? O que é literatura infantil? Aqueles versos bobões de certos escritores subestimam a inteligência de nossas crianças, não é não? Lá vai a autora mostrar que grandes obras lidas por crianças não são escritas "para crianças". Os textos são tão bons que as crianças curtem, os adultos, os idosos e quem mais quiser. De outro lado estão aqueles livros feitos sob encomenda, como se criança fosse tapada.
Vivo esse conflito em casa todos os dias. Uma criança de 6 anos, aprendendo a ler descaradamente, habita a mesma casa que eu. Não lhe faltam livros e estantes cheias deles onde se pode fuçar, pescar volumes e os levar para a cama (o banheiro, a sala, a varanda). Aqui se lê onde se desejar. Há pilhas seletas de livros nos banheiros, na sala, na cozinha. São como cestas de frutas na casa de avó, entendem? É servir-se, pegar a maçã e dar nela uma dentada.
O conflito é que a oferta de livros de casa é muito superior (em quantidade e em qualidade) à da escola. Sabemos que nem sempre é assim, mas este caso particular é. Moram em nossas estantes muitos livros bacanas, não apenas bem-escritos e bem-ilustrados, mas bem-feitos mesmo, em sua totalidade. Bem-editados, pensados, gostosamente projetados. Alguns são traduções, muito bem-escolhidas, outros são de autores brasileiros.
A sessão de leitura da hora de dormir é a hora da mordida na maçã (maçã deliciosa, frise-se, e não aquelas das bruxas maldosas dos contos de fadas). Escolhe-se um livro (inclusive pode ser repetido, não tem problema), deita-se na cama, bem junto e abraçado, lê-se, comenta-se e, quando o sono chega, fecha-se o livro, que fica na cabeceira, pra entrar no sonho da gente.
Os livros que temos aqui foram escolhidos, colhidos no pé, às vezes com autógrafo e tudo, e colocados à diposição do leitor. Não foram comprados porque estavam baratinhos, só pra fazer número. Literatura para criança ler é coisa séria. Pode até não vingar no coração delas, mas vai que vinga? É preciso plantar boas sementes, de qualquer forma.
E vamos nesse ritmo, construindo os caminhos da literatura com bastante cuidado, misturando ler com prazer, dormindo abraçadinhos, quando, de repente, vem a ventaria dos "projetos" da escola. Mãos ao alto, todo mundo tem de ler um livro no final de semana, menino, volte aqui, pegue este livro e peça à sua mãe para ler com você, fazer a ficha, responder a estas questões e colorir no final da página. Lá se vai minha plantação de maçãzinhas frescas.
Mas sim, claro, ter obrigação de ler não é ruim. Todo mundo tem de lidar com obrigações na vida. Não se pode privar alguém disso para sempre. Nem tudo é lúdico, prazeroso, leve e fácil. Mas precisa vir um livro tão ruim? Que penoso é para o pequeno leitor e que penoso para os pais, que precisam fingir que aquele livro... não é maçã podre. Livros feitos com papel ruim, ilustração ruim e texto péssimo. Rimas infames, lições de vida, didatismo exagerado.
Cadê a literatura? A experiência literária é uma outra. Nela não cabe, empurrada, de qualquer jeito, uma lição sobre meio ambiente que mais se parece uma campanha. Nela não cabe aula de boas maneiras. Cabe lá é aquela surpresa que o texto literário faz a gente sentir. Os marcianos que roubam cuecas na Terra; o menino que queria porque queria um sapo; o garoto que enfrentou a bruxa montada num bode; a menina que recebeu a visita de um super-herói; a versão de atirei o pau no gato contada pelo gato. Essas surpresinhas vão deixando a gente animado para ler. Meu piá de 6 anos sabe disso. E depois que o livro acaba, sempre tem uma ilustraçãozinha sobrando, e lá vai ele contar o resto da história, inventando umas evoluções. Não é como esses livros que os pais compram no início do ano só para atender a lista de materiais da escola. Tenho certeza de que foi isso mesmo. Passa no supermercado, vê lá o que está mais barato e tasca na lista do guri. Depois a meninada fica o ano inteiro levando maçã podre para comer em casa. Até as maçãs das bruxas têm um veneno mais sincero.
Ligia Cademartori me deixou cheia de surpresinhas. Fiquei até com vontade de ler o que os meninos de hoje gostam de ler. Quem sabe eu sigo essa trilha duas vezes, pelas mãos de outros encantadores de leitores?
Ana, querida, sorte do Dudu por ter você! Sorte de todos nós que tivemos quem nos ajudou, ou por nós mesmos termos nos tornado viciados em maçãs suculentas e enormes, nacionais e importadas. Viva os livro-maçã que tiram o fôlego e a gente fica querendo devorar de uma vez e ao mesmo tempo querendo comer devagarinho!