De repente, eu me dei conta de que meu rádio-relógio, aquele que fica em minha mesa de cabeceira (sempre fiz questão delas), completou 21 anos. Ninguém imaginava que ele duraria tanto assim. Não sei a marca - embora ele esteja há tanto tempo comigo -, não sei o modelo, não sei direito como funciona. Sei que é um aparelhinho cinza, simples e fiel companheiro. Falhou poucas vezes, abilolou-se com piques de energia, mas jamais se queimou. Aguentou muita pancada na cabeça e não perdeu a sensibilidade (em seu touch pad frontal de desligamento). Manteve o pulso firme, ao meu lado. Passou 21 anos me acordando, às vezes sem sucesso, sempre no modo apito. Raras vezes ouvi o rádio, sendo bem mais entusiasta do relógio e da função sleep. E era nela que morava o perigo. De dez em dez minutinhos a galinha enchia o papo. Acorda, dorminhoca! Mais dez minutinhos, por favor. E eles fazem uma imensa diferença.
Meu rádio-relógio não toca CD, não tem alta potência e nem mesmo serve como item de decoração. É uma caixinha meio listrada posicionada ao alcance da mão, em geral, a direita. Não superaquece nem tem baterias que o mantenham aceso em caso de pane. Embora sirva para acordar pessoas, não tem uma sirene muito irritante. Cumpre bem seu papel, sem exageros.
Quantos tapas na testa ele levou, em duas décadas? Quantas vezes me deixou na mão quando a energia caiu? Quantas vezes apareceu piscante, dando-me um sinal de que algo havia acontecido com nossa energia elétrica? Tocou música poucas vezes, mas tocou. E, mais importante, foi presente, um importante presente de um padrinho falecido dez dias antes dos meus 15 anos. O último presente.
Mas eis que meu rádio-relógio andou mostrando sinais de cansaço. Embora os números digitais vermelhos ainda fossem bem acesos, o botão de volume começou a falhar e o apito, com o tempo, ficou rouco. Como um velhinho que perde a voz, logo cedo, na hora de dar o grito de acorda!, o toque começava fraquinho e ia se acostumando, até conseguir alcançar maior intensidade. Dei uns toquinhos no alto-falante, pedi por favor, mas não teve jeito. Era hora de descansar. Os números ainda piscavam com vida, alerta, mas a voz já não era mais a mesma. Era chegada a hora, então, de substituir o rádio-relógio.
A procura pelo novo aparelho durou muito. Nem todo mundo emprega esses dinossauros em seus quartos, com a função de interromper um sono gostoso. Rádios-relógio são carinhosos, prestativos, úteis e companheiros, mas, dizem por aí, celulares podem ser ainda mais. Muita gente se acorda com a ajuda desses telefones móveis, que também têm alarmes e sonecas (inclusive, muito simpáticas). Mas eu ainda fazia questão de um rádio-relógio. E não é fácil de achar.
O modelo caixinha foi impossível. Hoje, eles são mais arredondados, sedutores e híbridos. Um deles era robusto, gorducho e tocava CD. Outros quase nada tinham de rádio-relógio. Onde fica o botão da soneca? Consegui achar um com as funções do meu velho companheiro, só que vertical. Interessante, afinal, mas que me demandou certo realinhamento de postura. Vamos testá-lo no momento de acordar.
Passei a vida toda acordando com rádio-relógio. Não se trata de um costume da vida adulta. É coisa de infância, quando descobri, bem cedo, que teria sempre, sempre, sempre dificuldades de me levantar ao amanhecer. De fato, até hoje é das coisas que mais me custa fazer na vida.
Pronto. É feita a substituição. Mas isso não significa que aposentarei completamente meu radinho. Lá vai ele migrar de quarto, onde se alivie ao menos da tarefa de acodar alguém e de levar tapas na testa. De agora em diante, fica apenas na função relógio, ajudando a ver as horas no escuro, com seus olhinhos vermelhos de bolinhas piscantes.
E que histórias deve haver com esse tipo de equipamento! Outro dia mesmo soube de um estudante de engenharia que jamais conseguia se levantar em tempo para a primeira aula da manhã. Jamais. Todos os dias ele era despertado pelo rádio-relógio, mas apertava a soneca e tirava lá mais dez, vinte, trinta minutos de sono. Quando chegava à faculdade, já havia perdido os primeiros cálculos ou os primeiros desenhos da rodada.
Um dia, o aluno de engenharia achou por bem tentar resolver seu problema. Foi para o laboratório e inventou um relógio-carrinho. Projetou uma interface entre o apito e as rodinhas e pronto. Construiu seu protótipo e levou para casa. Posicionou seu aparelho exclusivo no chão e esperou o dia amanhecer.
O barato do despertador era este: quando o apito tocava, bem cedo, acionava as rodas e o carrinho saía andando pelo quarto. O estudante era, então, obrigado a se levantar para desligar a sirene ambulante. É sempre possível se deitar de novo, mas o fato de estar de pé e no horário de ir para a aula aumentava a culpa do jovem sonolento. Quando conheci esse projeto, tratei logo de dizer: patenteia, produz e me avisa. Quero comprar uma coleção desses reloginhos aí. E acho que não serei só eu.
Ontem o despertar romanticamente era feito com o cantar dos galos, e até João Cabral de Melo dizia que era o galo que fazia o amanhecer. Com o tempo foi o rádio-relógio, que às vezes despertava com o repicar da viola. Hoje pode até ser o som do celular. O importante do despertar é abrir a janela do olhar para um mundo, que aprazivelmente vamos construindo a partir não do sonho, mas de uma realidade. Em cada respirar do existir necessitamos acordar.