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Sexta-feira,
8/10/2010
Sampa
Tatiana Mota
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Viver longe de casa transforma o fisicamente distante em algo muito mais próximo do coração. Particularmente quando se vive em um lugar tão diferente como a Holanda. Vem saudade de tudo, em especial do banal que um morador do Brasil experimenta todos os dias. Posso ser taxada de sentimentalista, de órfã do feijão, mas não vivi ainda um dia aqui sem sentir falta de alguém ou de algo bem brasileiro. Antes de parar nos Países Baixos vivi dois anos em São Paulo, e minha memória desses dias marcantes vai ficando mais nítida com o crescer da saudade.
De metrô chegava ao trabalho, e o metrô me levava a uma viagem mais longa que o curto trajeto até o centro da cidade. Como moradora nova havia em mim um olhar curioso sobre tudo e todos. As pessoas entravam no trem, eu os observava em seus jeitos de andar, sentar, falar, suas aparências. Enquanto o trem estava em movimento, eu ficava pensando no que cada uma daquelas pessoas sentia naquele momento, criando histórias nas quais os incautos passageiros eram os personagens principais. Contudo, outros dias me sentia oprimida com a quantidade de gente, espremida no meio dos apressados, sozinha na multidão.
Ao final de meu percurso emergia do subsolo para encontrar o Mosteiro São Bento, construção ligada aos primeiros religiosos que lá se instalaram. Em dias de sorte, escutava os sinos. Um tilintintar de serenidade em meio a milhares de ruídos.
Um recorte do viaduto Santa Ifigênia
Depois, atravessava o viaduto Santa Ifigênia, construção do começo do século passado, parte do complexo do Vale do Anhangabaú. Não consigo imaginar esta região como uma fazenda que vendia agrião e chá, mas um dia foi assim. Atualmente só brotam pessoas e concreto. Chamavam minha atenção os vendedores com suas instalações precárias, prontos para fugir caso chegasse a polícia. Além dos caras com carrinhos de controle te perseguindo, o homem cadeado e a moça das meias, tinha meu favorito, o apresentador do boneco mágico. Fazia-o rodopiar, distraindo os transeuntes, sempre dizendo: "Ele pula, ele dança, serve para o adulto e para a criança".
Vez em quando tomava um cafezinho no Edifício Martinelli, outro ícone da cidade, construído na década de 1920. Todo trajeto é tão nítido em minha mente, nem preciso fechar os olhos para lembrar. Sim, estou me vendo retornar pela rua 15 de Novembro, admirando o prédio do CCBB, da Bolsa de Valores... É só mirar os olhos um pouco acima da multidão que nos suga a atenção para se admirar com muita beleza arquitetônica. Não longe, o famoso edifício Banespa nos permite divisar o mar de arranha-céus que compõe a cidade.
A feira
São muitos os tesouros escondidos nessas ruas e esquinas, como a feira bem em frente à nossa casa, com direito a pastel e caldo de cana. Essa abundância de frutas, verduras e simpatia dos vendedores que há em toda cidade brasileira não se encontra por aqui. Mas talvez meu achado favorito tenha sido o parque Água Branca, próximo ao estádio do Palmeiras. Como era bom ir lá tomar café da manhã e ler um livro, num dia de domingo em que caí da cama mais cedo. Beneficiar-se do sol, bem mais abundante ali, e ver a vida passando através das pessoas que correm, conversam e brincam. Ver galos, galinhas, patos e até um casal de pavões andando livremente, além de curtir o cantinho da viola, onde podia escutar músicas que me remetiam ao campo, aos avós, às memórias da infância brejeira nos dias de Goiás.
Entretanto, a cidade tem seu lado triste, retratado por uma música que apesar de negativa em quase sua totalidade virou hino não-oficial da metrópole. Claro que Caetano tinha sua razão ao descrever em "Sampa" o impacto que essa gigante nos causa, nós que ali não nascemos.
A poesia das esquinas é por vezes dura e concreta. Nessas esquinas vemos muitos irmãos caídos, abandonados por si mesmos, pelo Estado e por nós, cidadãos, ou então perambulando pelas ruas com suas chagas, e quem os enxerga não pode seguir sem estar com o coração meio ferido. Em meio aos ícones da cidade há locais sujos e feios, e é mesmo muito feia a fumaça que sobe, pois apaga as estrelas, e pinta o céu azul de cores marrons à luz do dia. Como sabemos, a cidade cresceu e se motorizou demais, então é fácil se perder em uma rotina caótica, estressante e impessoal. Às vezes é preciso um esforço, um olhar especial para se encontrar, e para encontrar a beleza que está ali gravada em todos os cantos.
Grafite na Vila Madalena
Ainda bem que era salva todos os dias. Quando não me bastava tudo que meus olhos e ouvidos conseguiam captar, chegavam-me sorrisos, cortesia, simpatia. O taxista me contava sobre sua família e dizia com sinceridade: "Vai com Deus". A colega de trabalho me recebia com um abraço. Um desconhecido oferecia seu lugar para eu sentar com meu barrigão. Uma grande amiga aparecia no mesmo metrô e resolvia tomar um cafezinho com pão de queijo em minha casa. O padeiro nos oferecia uma degustação de sua nova invenção. A cidade tem uma bela alma, um grande coração... Assim, passeava feliz pela sua garoa. Estarei em meus sonhos sempre caminhando pelo Bexiga, Liberdade, Paulista, Vila Madalena, e pela icônica esquina da Ipiranga com a São João.
Tatiana Mota
Hilversum,
8/10/2010
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