"Livro é fetiche". É o que tenho ouvido por aí há algum tempo, principalmente após o lançamento do Kindle, seguido pela popularização dos leitores eletrônicos. Esse fetichismo, associado a uma necessidade de contato físico com o objeto da adoração, foi apontado como uma das razões potenciais para o insucesso dos leitores eletrônicos. Na cabeça dos resistentes à modernidade, o livro é mais que um acumulado de folhas de papel. Trata-se de um objeto de adoração, merecedor de carinho, amor e afago com a ponta dos dedos.
Essa tendência ganhou sua maior representação ano passado, com uma declaração de Pedro Herz, dono da mágica Livraria Cultura. Ao ser questionado sobre o futuro dos livros eletrônicos, o empresário afirmou que os leitores consideravam o "cheiro do livro de papel" algo insubstituível. A relação odorífera com os livros seria tão poderosa que tornaria questionável o sucesso imediato dos modernosos leitores eletrônicos.
Insatisfeito com o falatório alheio, resolvi procurar a definição de fetiche na Wikipédia em uma fonte confiável, para ver se havia o harmonia entre meus sentimentos é a máxima do fetichismo literário. O Dicionário Aurélio nos explica que fetiche é um "objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto; ídolo, manipanço". Impossível não se encantar com o texto da definição. E, confesso, para mim, livro é, sim, um objeto de culto.
Encaro a literatura, e com ela os livros, quase como uma religião. Na estante, meu altar particular, tenho várias imagens sacras, como São Machado de Assis e São Italo Calvino. E, se há um espaço que é para mim uma catedral, tal lugar é uma boa livraria sortida de títulos desejados. Entre as estantes estão reunidas muitos de meus deuses, aprisionados em folhas de papel. Com alguns Reais, sempre mais do que eu possuo, eu posso capturar a bênção entidades santas e levar para casa um pouco de sua divindade.
Portanto, enxergo em um livro um poder realmente sobrenatural. Mas, recentemente, acabei cedendo à tentação do coisa-ruim e cometi um pecado que, em outros tempos, garantir-me-ia o comparecimento ao incêndio de uma fogueira portentosa, com direito de visão pelo lado de dentro. Decidi comprar um leitor eletrônico.
A escolha não foi fácil, principalmente porque em nossas terras brasileiras o assunto ainda engatinha. Primeiro, estabeleci dois critérios, a qualidade da leitura e a disponibilidade de livros em português. Excluí o leitor da Sony, que, apesar de possuir touchscreen é muito reflexivo. Depois, nadei contra a corrente majoritária e ignorei o Kindle, queridinho da atualidade. O aparelho, apesar de possuir a gigante Amazon por trás, ainda tem poucos títulos em português e é incompatível com a maioria dos livros fornecidos pelas poucas livrarias eletrônicas nacionais e com o formato epub, no qual é possível encontrar centenas (talvez milhares) de títulos de domínio público totalmente de graça. Optei, assim, pelo Nook, leitor eletrônico da Barnes & Noble, que, apesar de quase ignorado no Brasil, pode ser uma boa opção para quem consegue realizar compras no exterior.
Após a decisão e, com a tradicional ajuda do amigo-que-vai-para-fora, consegui comprar meu leitor eletrônico. No entanto, minha estreia na leitura eletrônica deu-se de maneira acidental. Os deuses da literatura me fizeram perder o exemplar do livro de papel que estava lendo e tive que recomprar o título, oportunamente, no formato eletrônico. Mas, ainda que abrupta, a transição foi agradável. Após alguns minutos de leitura do papel eletrônico, eu já me sentia familiar com aparelho e sequer me tocava que, um dia antes, ainda lia a versão de papel da mesma obra. Para trocar de página, basta apertar um botão e a folha de papel que estava na sua frente, como que por mágica, fica meio borrada e muda seu conteúdo. Certamente, trata-se de um objeto produzido por forças malignas, para emular um livro com perfeição e afastar os literatos de seu objeto verdadeiro de adoração.
Verdade que nem tudo são flores. Vez ou outra um reflexo incomoda um pouco e, para quem, como eu, cultiva o hábito exótico de leitura em penumbra, a falta de um contraste melhor pode incomodar. O reduzido tamanho da tela não chega a ser um problema para quem está acostumado a ler edições de bolso. Por outro lado, os ganhos são incalculáveis. O número de obras de qualidade disponíveis para domínio público é tão grande que já justifica o investimento no eReader. Basta pensar quanto custa, por exemplo, uma coleção de obras completas de Machado de Assis e lembrar que você pode pegar tudo absolutamente de graça na Internet.
Sempre haverá quem goste de carregar estantes nas costas a cada mudança de endereço. Há até quem veja nisso uma demonstração de sua fé. Eles me lembram aqueles que frequentam as igrejas para expiar os pecados da omissão literária. Mas, ao fim, esquecem que o Evangelho é uma ideia, não um livro ou mesmo um texto. Todavia, eu me tornei um herege a partir do momento que vi a telinha de papel eletrônico. E fetichismo por fetichismo, meu objeto eletrônico é muito mais mágico e cheio de feitiços. Para quem ainda espera sentir o odor de livro por muito tempo, vale um recado. Isso é só cheiro de papel em decomposição.
Nota do Editor
Carlos Goetteanuer mantém o blogEstado Crônico.
O livro de papel é um meio de informação, um objeto de decoração, e é com certeza uma obra de arte. Tem todo o trabalho artesanal, tem o trabalho científico, gráfico, na qual insere desenhos e fotografias. Independemente de hoje se escrever muito em computador. Podemos até escrever nas estrelas. A arte existe, e o livro como obra ainda resiste.
Você mesmo possui a arte perfeita de seduzir através de seus textos eletrônicos. Confesso, no entanto, que a minha rendição a esta modernidade vem muito lentamente preenchendo minha adoração de passar entre os dedos páginas e mais páginas de um livro que exala um cheiro provocador de êxtase.
Muito ilustrativo. Acredito que como quase tudo da minha geração o livro em papel tende à extinção. Creio firmemente que o livro eletrônico incorporará as funções do celular, TV e demais parafernálias eletrônicas que temos que ulilizar mas detestamos carregar.
Adoro o cheiro de livro novo, a capa, passar os dedos pelas páginas, frequento sebos, tenho uma desorganizada biblioteca com mais de mil livros, mas estou pronto para passar a ler num "leitor eletrônico" como você. Só estou esperando o mercado consolidar um equipamento que tenha quase todos os livros publicados no Brasil. O culto ao livro de papel pode continuar, mas tendo o livro como objeto, e não como literatura. Esta é composta pelos textos, que podem estar em qualquer suporte físíco ou não.
O livro de papel nunca vai acabar. Assim como uma pintura feita com o Photoshop nunca irá substituir um Van Gogh ou um Da Vinci, esses cacarecos eletrônicos não passam de um sucedâneo prático, sim, para os que conseguirem adaptar-se, talvez até um pouco mais baratos (embora os preços de livros que tenho visto nesse formato não se justifiquem, e recaímos na velha história dos custos), mas sem qualquer glamour. Eu não falo daquele livreco do Jorge Amado vendido promocionalmente aos quilos nas bancas de jornais: refiro-me àquela edição rara do Dom Quixote, talvez do século XVII, que num sebo eu vi ao módico preço de R$ 12.000,00 e que não terei nunca; ou mesmo edições de luxo, modernas, de grandes clássicos, que custam muito menos (cem ou duzentos reais), mas cuja beleza do acabamento técnico é tão envolvente quanto a própria obra (como uma recente edição do "Grande Sertão", de Rosa). Nesses termos, o livro não é uma simples "leitura", mas objeto de arte.
Acredito que vale a pena se tornar um pecador. Um pecadinho desses é passível de perdão. No entanto devemos observar que enquanto um objeto real que terá suas páginas amareladas, com o tempo somente será apreciado por um verdadeiro devoto da literatura. Um falso leitor jamais gastará seus reais para encher uma estante de objetos recheados de palavras. Agora com os objetos do pecado, será possível carregar dezenas, centenas e quem sabe milhares de obras. Uma coisa é fato, a literatura é uma arte que poucos sabem como apreciar. Aqueles que sabem, independente do meio, jamais deixarão de estimá-la. Agora quem não sabe, não é preciso dizer nada!