COLUNAS
Quarta-feira,
24/11/2010
Conversando com Truman Capote
Luiz Rebinski Junior
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Truman Capote não inventou o chamado jornalismo literário com seu romance de não-ficção A sangue frio. Mas, lendo a coletânea de textos que a editora Leya acaba de soltar sob o título (duvidoso, no mínimo) de Ensaios (Leya, 2010, 608 págs.), tem-se a noção exata dos motivos pelos quais o jornalista americano é tido como um dos maiores escritores do século passado.
O livro, aliás, é um passeio pelo século XX, em que o leitor é ciceroneado por um texto primoroso, às vezes ácido, às vezes doce, mas nunca morno ou sem açúcar. Capote podia ser um homem pouco confiável e em certos momentos traiçoeiro, mas, quando escrevia, derramava sua personalidade no papel, sem meio termo. Dizia o que sabia. Talvez por isso seus textos sejam tão deliciosos, pois estabelecem um tom de conversa com o leitor.
O incrível é que Capote não teve uma formação direcionada ou um "incentivo literário", digamos. Pelo contrário, sua infância foi tumultuada e a prova disso está em seu próprio nome. Capote era o sobrenome de seu padrasto, um negociante cubano.
"Comecei a escrever quando tinha oito anos ― do nada, sem nenhuma inspiração de um exemplo qualquer. Jamais conhecera alguém que escrevesse; conhecia poucas pessoas que lessem. Mas, de fato, as quatro únicas coisas que me interessavam eram: ler livros, ir ao cinema, sapatear e desenhar", escreve no prefácio de Música para camaleões, um de seus livros "jornalísticos".
Esse fato biográfico valoriza ainda mais os feitos do escritor. Seu autodidatismo, aliado à sua personalidade forte e a uma incrível vontade de brilhar no mundo das letras, tornaram a falta de um aprendizado formal apenas uma nota de rodapé em sua biografia.
"Minha opinião era de que ou alguém era um escritor ou não era, e nenhuma combinação de professores poderia influenciar a decisão final. Ainda acho que eu estava certo, pelo menos no meu caso; porém, agora percebo que muitos jovens escritores têm mais a lucrar frequentando uma faculdade, nem que seja apenas para conquistar entre os professores e colegas uma plateia para o seu trabalho; nada é mais solitário do que um aspirante a artista sem ter como sondar opiniões", diz um dos trechos de "Uma voz de uma nuvem", um dos destaques do livro, texto no qual Capote repassa o início de sua carreira como escritor e revela como se deu a confecção de Other voices, other rooms, seu primeiro livro, publicado quando tinha 24 anos.
Para quem é movido por um interesse biográfico e quer ler a história contada pelo próprio personagem, Ensaios é um prato cheio. A primeira parte do livro é recheada com relatos pessoais, quando Capote ainda era um jovem escritor em busca da própria voz.
Depois de ser demitido da revista New Yorker ("meu primeiro e único emprego com carteira de trabalho"), Capote parte para uma jornada no Alabama, "na casa de uns parentes, uma família de agricultores de algodão". Lá tenta ser um escritor full time, mas seus hábitos encontram resistência na família do interior e ele parte para uma vida cosmopolita.
Sua passagem por países como Haiti, Espanha e Itália, lugares em que morou ou se hospedou por longas temporadas, dão um tom de diário de viagem à primeira seção do livro. Capote trata de adicionar doses generosas de poesia e "imaginação" a seus relatos de viajante.
Não à toa Capote se autointitulava criador do romance de não-ficção. Não era apenas um surto de grandeza. Sua capacidade para criar cenários, descrever detalhes e traçar retratos psicológicos de seus "personagens" é mesmo proustiana. Os textos do livro, a princípio, são todos jornalísticos. Mas Capote embaralha as coisas de forma a causar uma boa confusão no leitor. Começa-se a ler um texto como uma reportagem, mas, ao chegar à última palavra, o leitor está convencido de que aquilo é um conto, uma história de ficção.
Em um dos textos, chamado "Lola", Capote conta sua relação com um corvo que passa a conviver com ele em sua casa na Itália. O corvo lhe fora dado de presente, só que com as asas cortadas. Certo dia, o animal, depois do ataque de um gato, despenca da janela e cai em cima de um caminhão de verduras, que o leva pra sempre. Além do corvo Lola, na história de Capote há uma menina desamparada que se apaixona por um calhorda, um velho senil que passa as tardes olhando para o nada e, claro, um intelectual americano que constrói a imagem da cidadezinha a partir de seu olhar crítico e mordaz.
Realmente não ficaria nem um pouco assustado se Capote tivesse inventado toda essa história, que me parece muito pouco convencional. O escritor, em Capote, não dava trégua. Por mais que tivesse compromisso com a informação em textos jornalísticos, parecia sempre tomado pelo seu imenso talento literário.
"André Gide, aquele imoral moralista, escritor favorecido pela sinceridade, mas sem nenhuma imaginação, desaprova Jean Cocteau, cujos dons as musas malvadas haviam invertido, debochado dele, como homem e artista, tornando-o uma criatura muito imaginativa, mas sem nenhuma sinceridade. É interessante, então, que Gide tenha sido um autor da mais precisa e, por alguma razão, mais simpática descrição de nosso mais velho menino terrível", escreve Capote em uma espécie de breve perfil do escritor francês, autor de Os moedeiros falsos.
Relatos como os sobre Gide estão agrupados em uma seção chamada "De Observações". É a seção jet set cultural, na qual Capote exibe seu conhecimento enciclopédico sobre personalidades que moldaram a arte no século passado. De Mae West a Picasso, Capote escreve com a propriedade de quem viu de perto o que essas pessoas faziam. Foi parceiro de Richard Avedon, que fotografou diversas de suas matérias, e amigo de Somerset Maugham, que disse ser Capote "um estilista de primeira qualidade".
Nesses pequenos drops, que não chegam a serem perfis, pois muitos têm menos de uma página, Capote escreve como Capote, sem muita firula e medo das consequências daquilo que diz.
"Chaplin teve acesso à genialidade, e outra vantagem ainda mais rara que essa: teve o benefício de ser o único proprietário de seu negócio ― o patrocinador, produtor, diretor, escritor, astro. Mas se deixou absorver pela petulância ― ele acredita, talvez com justa razão, ter sido maltratado pela América, por sua imprensa, pelo Departamento de Estado, e assim caminha furioso por sua vila; o que é direito seu, mas ainda lamentável, porque é um desperdício: seu último filme, Um rei em Nova York, um cutucão irritado nas coisas dos Estados Unidos, foi um completo desperdício ― a menos que tenha servido para extrair o fel de seu papo", escreve sobre Chaplin em 1959.
Mas a cereja do bolo está no meio do livrão. As cerejas, melhor dizendo. Há pelo menos três reportagens que valem pelo livro ― "Ouvindo as musas", "O duque em seu domínio" e "Caixões feitos à mão". Por uma ironia tipicamente capoteana, o escritor ficou conhecido fora dos Estados Unidos por suas reportagens, muito mais do que pelos seus livros de ficção. "Ouvindo as musas" é um exemplar de como Capote pulveriza as fronteiras entre ficção e jornalismo. Em 1955, em plena Guerra Fria, o escritor parte de Berlim Ocidental com o elenco da produção americana de Porgy and Bess, uma ópera composta em 1935 por George Gershwin, rumo a Rússia, mais precisamente a Leningrado. Capote e outras 94 pessoas partem para uma viagem que, por si só, já era um evento. Em pouco mais de cem páginas, o escritor oferece ao leitor uma visão privilegiada de uma pequena odisseia, em que guerras de ego, manobras políticas e o choque de culturas distintas fazem de uma turnê teatral o pano de fundo para uma imbricada história que poderia, facilmente, ser vendida sob a etiqueta de um "romance". Ou melhor, como uma "novela jornalística", como o próprio Capote definiu o texto.
No ano seguinte, em 1956, Capote já estava em Kyoto, atrás da maior estrela de cinema da época: Marlon Brando, que filmaria no Japão o filme Sayonara. Outra vez o escritor mistura seu apurado senso crítico a um poder de síntese e observação pouco comuns. Não leva muito a sério o blefe de Brando, que a todo o momento ameaça trocar o status de estrela de Hollywood por um templo budista. "Marlon Brando: nenhum ator da minha geração possui maior talento natural; mas nenhum outro levou a falsidade intelectual a níveis mais elevados de hilária pretensão. Exceto, talvez, Bob Dylan: sofisticado enganador musical (?) fingindo ser um revolucionário de coração simples (?), mas um caipira sentimental".
Mencken e Edmund Wilson (que eram da linhagem do século XIX) poderiam ser mais cultos, mas Capote talvez tenha sido o jornalista que melhor soube absorver as próprias experiências em benefício de seu trabalho.
"Então tudo desmoronou" e "Caixões feitos à mão", são pequenas pérolas ao estilo de A sangue frio. O primeiro é sobre Robert Beausoleil, um integrante da família Manson, que foi o pivô do assassinato da atriz Sharon Tate, em 1969. O segundo trata de um serial killer que confeccionava caixões em miniatura e os mandava, pelo correio, para as vítimas. Em ambos os textos, escritos cinco anos antes de Capote morrer, o escritor demonstra que seu instinto e sensibilidade continuavam aguçados.
Ótimo para quem quer excursionar pelo trabalho de um dos maiores escritores do século passado, Ensaios só peca por dois detalhes: os editores não deixam claro para o leitor que quase todos os textos do livro já haviam sido publicados no Brasil em edições solo de Os cães ladram (L&PM) e Música para camaleões (Companhia das Letras); além disso, não há informação sobre a fonte em que os textos foram publicados originalmente. Ainda assim, nada que tire o prazer dessas "conversas" com Capote.
Nota do Editor
Leia também "O pueril Capote".
Para ir além
Luiz Rebinski Junior
Curitiba,
24/11/2010
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