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Quarta-feira,
16/3/2011
Kesey, um estranho no ninho da ficção
Luiz Rebinski Junior
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Ken Kesey certamente representa um dos casos mais interessantes da literatura mundial. Um escritor que, depois de escrever um livro sensacional, começou a ver na literatura uma arte limitada e infinitamente menos interessante do que a vida cotidiana ― e aquilo que o ser humano pode fazer com ela. Na história da literatura há muitos casos de escritores que se cansaram do seu ofício. Seja pela mesquinhez que rege as relações no mundo literário ou mesmo por conta de uma espécie de estafa criativa que costuma dar o ar da graça depois de anos de trabalho intenso.
Apesar de continuar publicando até pouco antes de morrer, principalmente livros de ensaios, Kesey parece ter deixado de acreditar no poder transformador da literatura, dedicando-se a personagens e causas reais que lhe pareciam mais complexos do que qualquer ficção.
"Eu percebi que Cassady faz tudo o que um romance faz, mas ele fez melhor porque estava vivendo aquilo, e não escrevendo sobre aquilo", disse Kesey à Rolling Stone, sobre seu fiel amigo Neal Cassady. E assim como se deu com o louco personagem beat, Kesey se encantou com Timothy Leary, os Merry Prankters e, claro, o LSD. Kesey simplesmente descobriu que a vida real valia mais a pena. Para muitos críticos, no entanto, o escritor, que foi saudado como uma das grandes vozes da literatura americana, havia simplesmente sucumbido às drogas e ao prazer desregrado.
Kesey, logo depois de escrever seu segundo romance, Sometimes a great notion, saiu em uma turnê alucinada em um ônibus escolar na companhia de vários amigos para divulgar seu livro. No caminho, fez um road movie que nunca foi lançado. Depois disso, parece ter esquecido sua máquina de escrever em um canto qualquer depois de uma viagem de LSD. Em vez de escrever novos romances, Kesey viveu seu próprio romance, transformando sua vida em um roteiro alucinado de vitórias e fracassos, o que inclui diversas prisões, anos no exílio e as famosas festas de louvação aos psicodélicos, que ficaram conhecidas como acid test e deram início à onda hippie que tomou conta dos anos 1960. Tom Wolfe, o jornalista dos grandes temas, dedicou-lhe um livro em que conta como Kesey se tornou o guru de uma geração de hippies.
Mas, ainda que Kesey tenha sido um agitador cultural e político importante, seu nome permanece intrinsecamente ligado ao seu primeiro romance. Como ativista, Kesey se esforçou para que as drogas entrassem na pauta política de seu país, mas foi com Um estranho no ninho que ele realmente conseguiu o que desejou.
Assim, de orelhada, o leitor menos avisado pode crer que Um estranho no ninho é uma ode a favor das drogas. Pode até ser, dependendo do leitor. Mas nesse caso não deixa de ser uma visão rasa de algo mais complexo. Na verdade, tematicamente, o romance não tem nada a ver com o poder das drogas como combustível de criação, a grande bandeira de intelectuais que aderiram aos psicodélicos nos anos 1960. Kesey trabalhou em um hospital psiquiátrico e dessa experiência nasceu seu livro mais célebre. A história de um desajustado social que se faz de louco para escapar da vida dura em uma colônia penal, indo cumprir sua pena em um hospício, pode ser interpretada de várias maneiras, suscitando inúmeras discussões. E essa é a chave do romance. É possível lê-lo de várias formas. McMurphy, o protagonista do livro, é um malandro viciado em jogo que, depois de um período de sossego no hospital, começa a reavaliar seu plano, pois percebe que o hospício é um lugar mais barra-pesada do que a prisão. O livro incita, a todo momento, a reflexão sobre sanidade e loucura, além de contestar os métodos de tratamento da psiquiatria americana. Mas não é só isso. Se fosse, seria um documento panfletário. Mas Kesey foi habilidoso o bastante para falar sobre diversos temas de forma sublime, leve e com muito humor.
McMurphy, claro, é um grande personagem, uma espécie de herói sem caráter, um malandro que no final se revela fiel aos seus amigos "malucos". E esses malucos compõem um time de personagens tão inspirado quanto a galeria de tipos de Faulkner, com seus narradores autistas. Kesey dosa bem a medida do "humor doido", as excentricidades dos internos, com a melancolia e tristeza que vêm acopladas à história de vida de cada um.
A riqueza do livro também está em sua estrutura narrativa, ainda que seja um romance realista, linear e que não investe uma vírgula naquilo que os estudiosos chamam de linguagem. O livro é contado por um índio chamado Brondem, que durante anos se fingiu de surdo-mudo, escutou as piores barbaridades do hospital e resolve contar tudo a partir da chegada de McMurphy ao hospital. Mas o leitor só fica sabendo desse detalhe depois de ler metade do livro. Antes disso, Kesey instiga o leitor a se perguntar quem estaria narrando aquela história. E o fato de um doente mental narrar de forma tão minuciosa o livro, é a forma velada de Kesey dizer que os loucos podem não ser tão loucos assim, como a sociedade os julga.
Um estranho no ninho e Kesey devem algo também a Milos Forman, que tratou de popularizar o romance, ainda que o livro tenha feito estardalhaço suficiente uma década e meia antes do filme. Eu mesmo assisti ao filme antes pegar o livro. E claro que isso confirmou o que penso a respeito das adaptações literárias: o livro é sempre melhor. Mas isso tem a ver com minha predileção pela literatura, então não vem ao caso. O que vem ao caso é que Kesey fez um livro extraordinário, deixou os personagens imaginários de lado, foi viver suas próprias aventuras e fez de sua vida o mais incrível dos romances, sempre crente de que a mais elevada forma de arte é uma vida bem vivida. Mas, no final, a literatura parece ter vencido. Um estranho no ninho ganhou a parada.
Para ir além
Luiz Rebinski Junior
Curitiba,
16/3/2011
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