COLUNAS
Quarta-feira,
27/4/2011
Vida conjugal
Guilherme Pontes Coelho
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María Magdalena Cascorro desde sempre lutou contra a cafonice, a mesquinharia, a insensibilidade. Sua família, pais, irmãos e, principalmente, irmãs, María del Carmen e Maria Dorotea (esta, a pessoa mais ardilosa do mundo), representavam o que ela menos queria para si. Ela, tão sensível e tão aberta ao mundo cultural dos livros e das artes, jamais suportou o ambiente familiar primevo e continuaria, pelo resto da vida, a ter ojeriza à estreiteza de espírito dos parentes, inclusive por não respeitarem sua mudança de nome, pois nunca a chamavam de Jaqueline Cascorro, com a pronúncia afrancesada, Cascorrô, mas de María Magdalena mesmo, sem esconder, não sem uma pitada de zombaria, como uma mexicana como ela deveria se chamar.
Jaqueline, como ela mesma prefere, penou um bocado até chegar à faculdade. Mas chegou. Faculdade de Filosofia e Letras. Não que ela tenha nascido com o gene reflexivo dos filósofos nem com o talento criador dos escritores; mas, devo admitir, ela gostava daquilo. Gostava dos livros, do ambiente cultural, de conversar sobre arte. A intelectualidade tinha um efeito apotropaico sobre ela.
Ela tinha uma amiga, Mérgara Armengol, que criara uma espécie de academia, em sua própria casa, onde havia cursos e oficinas. História da arte, hermenêutica do romance, criação literária, essas coisas que sempre são objeto de cursos e oficinas. Pois Jaqueline sempre fora assídua freqüentadora da casa da amiga, onde já aconteciam reuniões sob a mesma pauta cultural, e depois aluna aplicada da tal academia, uma aluna que sempre anotava tudo direitinho e que sempre estava disposta a discutir a aula, debater os livros, apreciar as obras em estudo. Uma disposição que parecia nunca ter fim. Jaqueline era o tipo de aluna que rabiscava os cadernos de estudo, os guardava numa gaveta e nunca mais olhava para eles novamente. Um tipo de aluna capaz de fazer o mesmo curso várias vezes (os cursos na tal academia duravam em média dez meses) e com a mesma dedicação, porque não lembrava mais de nada estudado assim que o curso era concluído.
É inegável que o ar respirado em ambientes culturais fazia bem a ela e ela jamais poderia se abster desse remédio, porque, além de sua história pessoal a obrigar a querer se elevar culturalmente, seu casamento era extremamente infeliz. E seus amigos e colegas de curso sabiam disso (a família também sabia, mas a indiferença era mútua). Ela, sempre que podia, às vezes com a ajuda de um pouquinho de álcool, matraqueava alucinadamente com a primeira pessoa desavisada sobre como sua vida conjugal era infeliz, sobre como ela se decepcionou com o marido, sobre como o marido a tratava mal e a traia descaradamente com todas as mulheres do mundo (embora neste quesito ela estivesse longe da santidade). Jaqueline, tão carente, coitada, prestativa e boa aluna, não tinha fama de boa comensal.
Nicolás Lobato é o nome do marido. Eles se conheceram quando faziam faculdade. Ele estudava direito. Mas não concluiu o curso, e Jaqueline também não: casamento. As ambições dele, como algumas vezes ficou claro na história do casal, até que poderiam casar com as dela. Ela queria ser culta e articulada, instruída nas artes das conversas de salão e das reuniões regadas a champanhe, ao som de Bruckner, sob o signo de Choderlos de Laclos ou de qualquer outro escritor canônico o suficiente para ser discutido entre emergentes mexicanos da década de sessenta. Ele queria ser rico, magnânimo, chic, sofisticado, poderoso, influente. Num exercício imaginativo, como a própria Jaqueline faria numa ou duas ocasiões (só que com uma leve alteração de dramatis personae), seria possível vê-lo homem rico, um self-made man, soberano sobre sua própria riqueza, erigida no ramo do turismo, com hotéis e agências de viagem, e acompanhado por uma dama requintada, uma verdadeira patronesse, senhora das artes, de nome afrancesado.
Mas Sergio Pitol, autor de Vida conjugal (Companhia das Letras, 2009, 107 págs., tradução de Bernardo Ajzenberg), teve outras ideias para o destino do casal, ao escrever uma paródia do casamento, macabra e irônica, narrada num ritmo impecável.
Nicolás Lobato trabalhava muito. Não concluiu o curso de direito não só por causa do casamento, mas porque, conseguindo um pouco de dinheiro ali, contraindo dívidas acolá, viu seu personagem de empreendedor virar protagonista no palco high society local. Ele estava fazendo dinheiro e interpretando um papel convincente de mestre-de-cerimônias, sem fazer mistério algum à mulher dos bônus que essa vida microestelar proporcionava: mulheres.
Com toda tristeza, Jaqueline levava a vida, essa vida. Ela, que casara virgem e que compartilhava com o marido um passado miserável e uma ambição de crescer na vida.
No entanto, tudo "mudou de repente quando, ao quebrar com as mãos uma pata de carangueijo e ouvir uma garrafa de champanhe sendo aberta às suas costas, [Jaqueline] se deixou dominar por um pensamento que depois retornaria de modo intermitente, transformando-a, para sempre, numa mulher de ideias muito más".
Para ir além
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
27/4/2011
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