A literatura é um mar. E isso não é uma metáfora pretensamente poética. A literatura, literalmente, é um mar inesgotável. Umberto Eco, aquele italiano tarado por livros, já calculou quantos livros poderá ter lido em uma vida cômoda e longa. E ficou desanimado.
Com o mercado editorial brasileiro insanamente produtivo, é difícil se manter a par de todas as novidades, principalmente se sua formação livresca parece um queijo suíço, com buracos vazios onde deveriam estar clássicos. Em uma entrevista que fiz com José Castello, perguntei-lhe quais os livros que ele deveria ter lido e não leu. Entre outros, disse que não havia lido Dom Quixote, o livro que fundou o romance moderno. Confesso que fiquei surpreso, mas depois de um tempo me senti até satisfeito de ter ouvido aquilo. Bem, se o Castello não leu Dom Quixote, não preciso me penitenciar e ficar vermelho toda vez que entro em uma livraria e olho para aquela edição bonitona da Cosac Naify de Anna Kariênina. Afinal, a verdade é que nunca vamos poder ler tudo. Nem mesmo se dedicando apenas aos clássicos.
Esses livros, que estão no cânone e não sairão de lá, em geral são tão complexos quanto fascinantes, exigem do leitor mais atenção e, quase sempre, mais de uma leitura. Mas como reler clássicos se há uma pilha de outros livros igualmente fascinantes à espera de leitura? Bem, essa é uma questão que nem mesmo o senhor Jorge Luis Borges, com sua sede literária incontrolável, soube lidar.
Lembro que com pouco mais de 18 anos, li todos os livros de Hemingway que estavam disponíveis no mercado brasileiro. Alguns livros em edições carcomidas, feias, com traduções duvidosas. Mesmo assim, com a determinação do velho pescador Santiago, fui em frente na missão de desbravar os escritos daquele que, eu tinha ouvido, era um dos maiores escritores dos Estados Unidos em todos os tempos. E hoje, mais de uma década depois, o que sobrou de Hemingway no meu winchester? Quase nada. Lembro-me vagamente da dor que o velho Santiago sentia ao lutar com o descomunal peixe em O velho e o mar, algumas passagens de Por quem os sinos dobram, algumas sinopses de contos e não muito mais que isso. Talvez, o retrato de geração que ele fez em Paris é uma festa seja a lembrança mais latente que tenho de sua literatura. É um livro que associo imediatamente a O grande Gatsby, que devo ter lido na mesma época. O que é engraçado, porque Hemingway sempre foi visto como um escritor durão, um homem de princípios e ideologia consistentes, que pegou em armas contra os fascistas. Mas, para mim, a lembrança que tenho dele, é a de um jovem talentoso flanando por Paris, quando a França ainda era o bunker da intelectualidade mundial. Um Hemingway romântico, portanto.
Nessas horas então começo a entender acadêmicos que passam a vida estudando meia dúzia de livros, lendo e relendo o mesmo livro a cada ano. Eu poderia fazer isso com Dostoiévski, todos os anos voltar ao crime de Raskolnikóv, à miséria e dor do estudante pobre que fez uma tremenda cagada e acabou na prisão. Mas, penso também, uma nova leitura talvez apagasse de minha mente a lembrança afetiva que tenho do livro, as circunstâncias em que li o romance, esses detalhes que ajudam a dar forma ao que lemos. E talvez por isso, por conta desses detalhes circunstanciais, eu tenha o livro ainda tão fresco em minha mente. Então, se um dia eu voltar às obras de Hemingway, certamente encontrarei outro escritor.
Por outro lado, com o tempo, a releitura parece sempre mais proveitosa do que a leitura inicial. A maioria dos livros que leio passa apenas de raspão pela minha mente. Assim que termino um livro, já engato outro, às vezes com um dia de descanso quando acabo a leitura de... um clássico - os clássicos em geral são livros que demandam mais dedicação e disciplina, cansam mais. Mesmo assim, quando me perguntam os últimos livros que li, tenho certa dificuldade em lembrar os três ou quatro livros que passaram pela minha mão. E olha que sou um leitor fiel até mesmo com os mais pavorosos romances. Nunca, em hipótese alguma, deixo um livro inacabado, nem que eu me arraste por semanas em uma leitura torturante, mas não largo o osso. Não sei como estabeleci esse código de ética masoquista, mas o fato é que me bate um peso na consciência de deixar um livro inacabado. E se o problema estiver em mim, não no livro? Acho que é esse tipo de pensamento que pipoca em meu subconsciente todas as vezes que penso em largar um livro. E, sei lá, pode parecer um negócio piegas, mas acho que terminar um livro é um ato de respeito com o escritor, por pior que ele seja. Então sempre penso várias vezes antes de iniciar um livro. Avalio quanto tempo a leitura vai demandar (e se disponho desse tempo) e, claro, que tipo de benefício e prazer ele pode me proporcionar. Um esquema bastante metódico para quem sempre se achou um leitor displicente, que "lê o que lhe cai na mão".
Você pode ler atentamente os Ensaios, de Montaigne, pode até fazer anotações detalhadas de cada ensaio, mas, ao longo da vida, você sempre vai precisar voltar e reler os textos para ter um entendimento mais significativo. É como ler Mencken, sempre que se volta aos deliciosos insultos do jornalista, parece que é a primeira vez. Mesmo que você sublinhe o sumário, faça anotações de rodapé, dobre a página, é sempre um prazer diferente ler o que impiedoso crítico diz sobre o casamento ou Joseph Conrad. Depois de lê-lo, é impossível não querer cometer, pelo menos uma vez na vida, um texto como o dele.
Não tenho a mínima ideia se sou um leitor maduro, mas associo a releitura a uma espécie de maturidade do leitor. Há dez, quinze anos, era absolutamente impossível eu reler um livro. O negócio era conhecer o maior número de obras e autores possíveis, digerir palavras sem saboreá-las. Leitor fast-food. Talvez fosse a urgência da adolescência, não sei. Mas há alguns anos começou surgir a vontade de voltar a grandes livros. Então vez ou outra me pego lendo um conto de Dalton Trevisan, trechos de uma biografia ou de um romance do Noll que já li mais de uma vez. E sempre fico encarando alguns livros da estante, tomando coragem para abri-los novamente.
Então meu coração (e tempo) de leitor está sempre dividido entre o velho e o novo, o clássico e o contemporâneo, a descoberta e a redescoberta, o Hemingway romântico e o durão. Enfim, um senhor problema para quem se aventura no tal mar literário.
Esse texto, bastante interessante por sinal, fez-me lembrar de uma belíssima frase de Nelson Rodrigues: "Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos."