O universo da música popular brasileira é extraordinário, seja na criação, interpretação ou no ramo puramente instrumental. Às vezes, a invenção brilha num único artista a partir de vários gêneros de criação, como em Baden Powell e João Bosco, que são excelentes instrumentistas, brilhantes compositores e intérpretes ao mesmo tempo. Temos a sorte de ter cantoras divinas como Elis Regina, Nana Caymmi, Astrud Gilberto, Bethânia e Gal Gosta (o que já nos dá o êxtase suficiente para continuarmos vivos). Temos a sorte ainda de sentir os ares e a poesia de Minas Gerais em artistas como Beto Guedes, Toninho Horta, Milton Nascimento e Lô Borges. Temos o rock pujante do Titãs (antes da meleca sentimental dos últimos discos), Cazuza, O Rappa, Lobão e Herbert Vianna. Temos ainda Luiz Melodia, Tom Jobim, Bebel Gilberto, Maria Rita, Chico Buarque e tantos outros artistas imperdíveis, uns mais ou menos geniais que os outros, mas sempre instigantes.
Há um universo de música medíocre também, que dói o ouvido e nos causa repulsa: Daniela Mercury (apesar de bela voz, o repertório é enlatado), Pitty (canta mal, letras infantis, composições ralas, dá enjôo e causa irritação), Ivete Sangalo (bela voz, belas pernas, mas repertório também enlatado). Todas elas, como outras da mesma espécie (inclua-se os "sertanojos"), terminarão no lixão da história.
Impossível fazer uma lista justa dos grandes artistas da MPB. Felizmente eles são muitos, contra a mediocridade que rola ao lado. Minhas escolhas serão guiadas não por uma ordem hierárquica de valor entre os realmente importantes, mas como resultado da afetação absolutamente particular e subjetiva que determinados discos me causaram. Claro que o valor que eles ocupam na MPB entrará de alguma forma no julgamento das escolhas.
Primeiro as damas, afinal somos cavalheiros: de Gal Costa indico o CD Live at the Blue Note, gravado em 2006 (EMI) no templo do jazz americano. O repertório do disco é composto de clássicos da bossa nova, de autoria de Tom Jobim, Carlos Lyra, Vinicius de Moraes, como "Fotografia", "Desafinado", "Chega de saudade", "Corcovado", "Garota de Ipanema", "Coisa mais linda", entre outras músicas de Dorival Caymmi, Ary Barroso. Ainda apresenta "As time goes by" e "I fall in love too easily", clássicos da música popular americana. Acompanhada por uma banda jazzística de contra-baixo acústico, bateria, violão e sax, a voz de Gal está delicada em seus vibratos, com a voz bem centrada e capaz de nuances e detalhes delicados, enquanto permanece vibrante de vida e sentimento, impondo-se com apaixonada presença.
Adriana Calcanhoto produziu uma série de CDs deliciosos, entre os quais cito Senhas (Columbia), com composições da cantora e de outras pessoas. Entre elas destaco "Tons", dedicada ao pintor Iberê Camargo, composta com versos de uma única palavra. Também a apaixonante "Mentiras" e a música que dá título ao CD, "Senhas". No geral, o disco é todo agradável de ouvir, seja pela bela poesia, pela voz de Calcanhoto ou pelos arranjos bem trabalhados em sintonia com as letras. Adriana é apaixonada pela poesia (principalmente aquela produzida pelo que Pound chamou de "poetas inventores"), cinema e artes plásticas e casa muito bem suas paixões artísticas com a música que produz.
De Elis Regina eu indico tudo o que passou por sua voz. Creio que Elis é tão genial intérprete como as divas do jazzElla Fitzgerald, Sarah Vaughan ou Billie Holiday o foram. Sua voz é marcadamente dramática, evoluindo conforme o sentido das canções que interpreta, passando de ruminantes sofrimentos ao exaltado riso de alegria ou ao grito lancinante de dor, enlouquecendo os excelentes bateristas, guitarristas, baixistas e saxofonistas que sempre a acompanharam. Sua imperativa e intempestiva presença no palco, aliada à sua voz poderosa, a transformava na cantora que mais despertava emoções nos espectadores através de suas performances.
De Caetano Veloso eu indico Circuladô (Polygram), pelas belas letras e pelo experimentalismo das canções "Circuladô de fulô" (a partir de trechos do livro Galáxias de Haroldo de Campos) e "Ela ela", com os improvisos cubistas da guitarra de Arto Lindsay. E como não se deliciar com as músicas "Itapuã", "Neide Candolina" (a professora negra que comprou um gol com o dinheiro que ganhou ensinando português) e "Lindeza"? Vale ainda destacar a genial "A terceira margem do rio", música de Milton Nascimento e letra de Caetano, inspirada no conto homônimo de Guimarães Rosa.
Quanto a Chico Buarque eu não tenho dúvidas quanto à beleza de todos os seus trabalhos. Mas destaco um dos CDs que admiro muito, que é o Chico Buarque ao vivo Paris ― Le Zenith, lançado em 1990. Aqui transparece aquela emoção do show ao vivo, com sua vibração própria. O CD abre com a dramática "Desalento", passa por "Gota d'Água", um clássico do nosso cancioneiro. Chico não descuida de uma interpretação dramática, que os instrumentos não deixam cair jamais, acentuando a emoção cortante da composição. E a poesia nos leva para outras emoções profundas em "As vitrines" e "Todo o sentimento". São no total 25 músicas, uma mais intensa que a outra, não deixando de pender também para o lado alegre da vida, onde o samba nos salva de tanta dor e desolação. Ouça-se "Palavra de mulher" e temos um Chico transfigurado em emoção pura. Os músicos que o acompanham são por si só um show de criação: Cristovão Bastos no teclado, no baixo, Luiz Claudio Ramos no violão, Chico Batera e Mestre Marçal na percussão. De Chico Buarque, me contento em catar a poesia que ele entorna no chão.
Também Luiz Melodia nos presenteou com um CD gravado ao vivo. Trata-se de Luiz Melodia acústico ao vivo. São apresentadas 25 canções do mestre carioca do Estácio, entre as quais "Fadas", "Pérola Negra", "Magrelinha" e "Codinome Beija-Flor" (que a partir de sua genial interpretação nos impede de voltar a ouvi-la na voz de Cazuza). Se Luiz Melodia é nossa pérola negra, que brilha mais que qualquer diamante, para que dizer mais?
A EMI editou juntos dois CDs de Beto Guedes, que vale ter em casa: Amor de índio e A página do relâmpago elétrico. Relembrar canções como "Nascente", "Lumiar", "Amor de índio" e "Feira moderna" já valem a compra do CD. Entre tantas músicas (30 nos dois CDs) somos levados ao interior da sensibilidade dos mineiros, sua poesia simples e ao mesmo tempo profunda. Sentimos a fusão entre experimentalismo, a canção popular e o rock dos Beatles transmutados numa música única que não está em outro lugar senão em Beto Guedes.
"Por tanto amor, por tanta emoção", agora vamos falar de Deus: Milton Nascimento. O CD Caçador de mim já dá conta de tornar o compositor um ser das alturas. O CD compõe-se de músicas que se tornaram clássicas no repertório de Milton, como "Cavaleiros do céu", "Caçador de mim", "Nos bailes da vida", "Notícias do Brasil". Com seu parceiro Fernando Brant, Milton consegue a proeza de gerar canções de profunda competência técnica, aliadas à capacidade de produzir a mais fina emoção no ouvinte. Sua voz brilha no nosso inconsciente nos dizendo que com sua música a vida valeu a pena, vale e valerá.
Da música instrumental brasileira popular, vou destacar apenas três discos, avisando que o universo dessa música é mais amplo do que suporta nosso espaço aqui (por exemplo, o trumpestista Marcio Montarroyos e o clarinetista Paulo Moura). Mas chamarei a atenção apenas para dois músicos: Toninho Horta e Yamandú Costa. Os dois encarnam a criação e a invenção em estado puro, com a capacidade de filtrar influências e torná-las outra coisa, mais rica, brilhante, emocionante. O primeiro CD de Yamandú, com título homônimo, é vasto em confluências de estilos que variam da música popular gaúcha, ao samba, chorinho e jazz ― no entanto, é apenas Yamandú que comanda a criação, que é dele, apenas dele. As apresentações ao vivo do artista nos mostram o quanto a competência e a possessão emocional pela música ainda é um assunto sério na arte. Toninho Horta, com Diamond Land (Diamantina) e Durango Kid (Big Word Music), nos mostra uma inventividade rara, fazendo do violão e da guitarra um campo presentificador das memórias e emoções vastas das montanhas e do povo de Minas. Dizem que Pat Metheny copiou o estilo de tocar de Horta. Isso é visível.
Chamo a atenção agora para o CD The essencial Airto featuring Flora Purim (Buddha), editado nos EUA. Com a participação de Ron Carter, Sivuca e Hermeto Pascoal, o disco é um campo de experimentações que transfiguram várias referências, do jazz à música nordestina, do berimbau da capoeira à bossa nova.
Do nosso rock pesado em qualidade destaco do Titãs o CD Cabeça Dinossauro, disco que revelou as transgressivas "Polícia", "Família", "Primata" e "Igreja". É uma pena que o Titãs tenha abandonado seu lado rebelde e se tornado, nas últimas produções, esse xarope emocional para adolescentes espinhentos de classe média e de gosto duvidoso.
Lobão é nosso primeiro e mais autêntico roqueiro encarnado. Seus discos são ótimos, mas sugiro a audição atenta de Universo Paralelo (na capa aparece apenas Lobão), da safra dos discos vendidos em banca de revista. Neste CD Lobão comunga com o rock dramático em composições como "El desdichado", "A vida é doce", "Tão longe, tão perto". São músicas pesadas com forte ingrediente emocional e letras belíssimas (não é só Cazuza que é o poeta do rock no Brasil, comprova esse Lobão). Há também músicas que não lembram Lobão, como as bossanovíssimas "Ipanema no ar", "Vou te levar", "Uma delicada forma de calor". Lobão talvez ensinando de que forma se deveria fazer bossa nova nos termos contemporâneos. Creio ser um disco imperdível.
Herbert Vianna gravou alguns discos solos que são primorosos. Sugiro ao leitor ouvir "O Som do Sim", com participações especiais de Cássia Eller, Fernanda Abreu, Nana Caymmi, Moreno Veloso e outros. A "História de uma bala" é emocionante. "Partir, andar" é translúcida em seu sentimento melancólico, como também o é "Eu não sei nada". O ideal é encontrar todos os CDs solos de Herbert e... boa viagem! Criatividade, elegância, refinamento, emoção sincera.
Como classificar o Rappa? Eu não sei. Deles eu tenho todos os CDs e ouço tudo o que criaram e ouvirei tudo o que vierem a criar. São formidáveis músicos, de uma inteligência crítica aguda. Não são panfletários, pois para eles a música é o que importa. Embora nos mostrem os abismos sociais, nos encantam e elevam com sua criatividade. Indico todos os discos e que se ouça sem parar, pois são admiráveis.
Cássia Eller é nossa cazuza de saias. Morreu jovem, mas deixou energia musical de sobra para quem gosta do verdadeiro rock. Os CDs dela são sempre vibrantes, mas indico o de 1992, com seu nome na capa, ela vestida de calcinha (ou cueca). Lá estão "All Star", "Eu sou neguinha" de Caetano, "Little Wing" de Hendrix, entre outras, sempre na clave da potência máxima do estar no mundo com uma postura rock and roll, ou seja, rock aqui é rock mesmo (sim, diferente de Cássia Eller, há rock enlatado andando por aí, pura mise-en-scène vazia).
Para finalizar a lista, ninguém melhor que nosso Rimbaud do rock nacional: Cazuza. Pela impertinência de suas letras, pela rispidez, agressividade, insanidade, amor à vida e à morte, contidos na sujeira de sua voz e na sua postura existencial, indico "Ideologia" como um disco emblemático do rock brasileiro. Como se a voz sufocada pela ditadura encontrasse eco na impertinência crítica e inquieta desse roqueiro. Delicado e selvagem, como o foram os poetas beats e Rimbaud, Cazuza deu voz ao nosso desejo de crítica, de rebeldia, de transgressão, no mais puro rock-blues que se pode ouvir em nossas paragens. São desse CD as já clássicas "Vida fácil", "Faz parte do meu show", "Obrigado por ter se mandado", "O assassinato da flor", "Boas novas" e outras.
Que os leitores que não conhecem ainda estes CDs se sintam chamados à sua audição e os que os conhecem que voltem a ouvi-los, é o que desejo com essa lista.
Tudo demais de bom... ótimas indicações e considerações, com apenas uma ressalva de minha parte: A Elis não é a cantora que mais despertou paixões e arrebatou públicos, e sim a Bethânia, que nunca passou por altos e baixos, sempre me mantendo cada vez mais alta em sua carreira. A Elis cantava a sua vida dramática e perturbada, enquanto a Bethânia, alegre por natureza, usa da sua veia dramática para interpretar o que lhe cai nas mãos. Aí mora a grande diferença entre as duas. É isso. Parabéns pelo artigo.