COLUNAS
Segunda-feira,
6/6/2011
Aluga-se um escritório
Ricardo de Mattos
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"Esta expressão 'Leitura', há cem anos, sugeria logo a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Sêneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim: e neste retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro, num recolhimento quase amoroso" (Eça de Queiróz).
Nossa reflexão foi estimulada pela reportagem publicada, semanas atrás, a respeito da venda do apartamento do escritor norte-americano Normam Mailer. Apesar de nunca alimentamos grande interesse pelo que diz respeito à vida pessoal de escritores, filósofos, músicos e outros artistas, sempre fomos cativados pelo locus operandi o local onde suas obras foram criadas ou tiveram orientação definitiva. Deveras, informações colhidas ao longo da vida revelam que si Nietzsche buscava inspiração em escaladas pelos Alpes suíços, Rousseau perambulava a ponto de escrever um livro sobre suas andanças - tendo um falso anúncio de morte festejado por Voltaire -, Maquiavel vagava por bosques e florestas antes de recolher-se para estudar os clássicos, e descontadas as obras nascidas em bares e tavernas, focamos nossa atenção no local onde eles finalmente acomodavam-se e escreviam.
Identificamos a origem particular deste gosto no escritório-biblioteca de nosso avô materno, assistente social e bacharel em Direito. O aposento, no qual se alojou certa vez até um mico fugitivo, possuía o conforto do cômodo destinado primeiro ao uso e depois ao contato social. Cadeiras de estofado macio - a sua com almofada extra -, gavetas cheias de coisas interessantes, como as aranhas, baratas e lagartixas de borracha utilizadas para assustar as empregadas e prateleiras cheias de livros. Entre estes, diversos números da antiga coleção Saraiva, brochuras de capas coloridas e intrigantes. Bem pouco ficou-nos de seu acervo material, pois doou-se o grosso para a faculdade de Serviço Social local, da qual foi co-fundador e professor. A essência, contudo, a atração pelo "ambiente doméstico de trabalho", a expressão ambiental de um recolhimento que é espiritual, isso herdamos e cultivamos.
Teto do gabinete de Montaigne
Nosso caro Montaigne recolhia-se a sua torre, na qual tanto ditava quanto escrevia de próprio punho. Tanto lia seus livros quanto as sentenças dos antigos gravadas nas traves e colunas de madeira. Imaginamos o trabalho de seu secretário. O ditado era fluente, ou devia ficar com a pena no ar por tempo indefinido? Pascal e Descartes preferiam a cama. O primeiro pela fragilidade da saúde. O segundo, por gostar do conforto. Cogitou-se ser a quebra deste costume a causa da pneumonia que o levou à morte. Mudando-se para a gélida corte de Cristina da Suécia, era requisitado logo cedo pela rainha.
A maior parte das descrições é feita por terceiros, visto que o dono e principal usuário está preocupado mais com o trabalho que com a disposição do tinteiro - ou do notebook. O inglês Kipling legou-nos o inventário de sua escrivaninha: porta-caneta em forma de canoa, caixa de madeira, estojo de madeira e de metal, pesos para papel, régua e outros "pequenos fetiches". Quem o relata é o argentino Alberto Manguel nOs livros e os dias, e a seu turno revela o que dispõe sobre sua mesa: caixa de pedra vietnamita, suporte de incenso, descanso de copos, pêra de vidro, etc. Em que pese o valor afetivo dos badulaques, bem como a função arquivística de cada um - também os tivemos -, deter-se em demasia sobre eles remete-nos àquelas revistas de sala de espera. Até onde lemos os textos borgeanos, não nos lembramos de descrições autógrafas de seus gabinetes de trabalho, quer o doméstico, quer na biblioteca em que trabalhou. Inobstante, a versão digital do periódico inglês The Guardian possui uma seção destinada às salas de trabalho de escritores, músicos e artistas gráficos (http://www.guardian.co.uk/books/series/writersrooms).
Manguel, pelo que se lê nos livros Uma história da leitura, Os livros e os dias, e A biblioteca à noite, tem especial sensibilidade para observar, descrever e criar o setting da leitura e da escrita. Sensibilidade com a qual devem aprender os prudentes. Tendo ficado sob nossa responsabilidade direta a biblioteca do centro espírita que trabalhamos, é nossa preocupação constante manter o ambiente acolhedor e aconchegante, ao mesmo tempo que aplicamos quanto possível as disposições de Allan Kardec.
Reconstituição do local de trabalho de Baruch Spinosa
De fato, um excelente trabalho de bibliofilia resgatou e fez publicar o Catálogo racional - Obras para se fundar uma biblioteca espírita. Conhecemo-lo poucos meses antes de assumir a referida biblioteca, numa incidência de fatos que não nos é mais estranha. Nele, Kardec sugeria obras de esclarecimento do leitor a respeito da Doutrina nascente, entregando ao indivíduo o arbítrio da aceitação ou da rejeição. Sugeriu também que as obras sejam organizadas em quatro categorias: (I) obras fundamentais; (II) obras complementares; (III) obras escritas fora do Espiritismo, incluindo aqui produções a respeito do budismo, do islamismo e o que mais havia de atualizado em obras científicas; (IV) obras contra o Espiritismo. Trata-se do último opúsculo do Codificador. No dia de seu desencarne, ele conferia as brochuras que seriam entregues com a edição do mês da Revista Espírita. É pouquíssimo conhecido mesmo nos meios espíritas.
A esta altura da vida, permeamos a herança avoenga com nossas próprias expectativas e aquisições. Entretanto, a configuração do local definitivo está adiada. Futuramente, almejamos um local maior e melhor, onde possamos, por exemplo, organizar todos os nossos livros, e rogamos a Deus por construção térrea que abra para um jardim. "Si temos uma biblioteca e um jardim, temos tudo", teria afirmado Cicerus. A leitura da matéria sobre o apartamento de Mailler lembrou-nos que a fase de transição hoje vivenciada torna necessário desfazermo-nos de nosso atual escritório. Considerando que internet facilitou as consultas forenses; que a maior parte do trabalho dispensa a presença em local determinado; e que a faculdade ocupa-nos boa parte do dia, não há porque mantê-lo fechado e ocioso. Não fosse o custo de reforma chata, aliado à necessidade de acompanhá-la in loco, já o teríamos encaminhado à imobiliária. Sentimos falta do lugar onde pudemos parar e silenciar o corpo e o espírito e encontrar a tranqüilidade momentânea que permitia tanto o fluir do trabalho quanto a igualmente importante reflexão.
Não é negada certa resistência, pois uma década transcorreu entre suas paredes. Estávamos ali no terrível "onze de setembro" - prestes a repetir-se - quando uma vizinha entrou correndo para avisar que "os Estados Unidos estavam sendo bombardeados". Naquele ambiente escrevemos despreocupadamente a coluna que nos vinculou ao Digestivo Cultural e quase todas as demais. Foi nosso local de trabalho, mas foi também onde lemos grandes obras e refletimos sobre elas em meio à fumaça de pretensiosos charutos e cachimbos. Lá também fizemos a transição do catolicismo para o kardecismo. Lá obtivemos os meios que permitissem a atual mudança de rumo existencial, não apenas no aspecto financeiro, mas principalmente em relação ao estofo espiritual que sustentasse o passo seguinte.
Não esquecíamos do caráter público do local, mas relaxamos as fronteiras entre o público e o privado. Antes entrávamos pela manhã, saíamos para almoçar, voltávamos à tarde e ficávamos até o começo da noite, caso não houvesse serviço externo. Começamos a entrar mais tarde, não almoçar em casa e sair com a noite avançada. Logo, procuramos incluir certo conforto doméstico que não chocasse os clientes. Música ininterrupta e variada, luz de abajur, um ou outro saquinho de biscoito. No mais forte do inverno, uma manta para as pernas. Lanche não, por preferirmos a padaria e não querermos visita de baratas e formigas.
Em termos de tranqüilidade, as diferenças tornam-se explícitas durante a escrita desta coluna. O pai acaba de arrastar metade dos móveis da sala em busca de uma tomada. O fato dele propor-se a aparar a grama da calçada incomoda-nos, pois para trabalhar um metro quadrado ele destrói outros cinco. Sabendo que iriam ao jardim, as duas cachorras latem com plena potência, e basta alguém aproximar-se do portão para recomeçarem. Enquanto não latem, dizimam lagartos. O escândalo incomodou a arara da vizinhança, que começou a gritar como si estivessem a arrancar-lhas asas. Segue-se quietude enganadora, quebrada pelo chamado do telefone. Só falta atender e escutar: sete dias. Não tocava o telefone do escritório? Sim, mas lá esperava-se que ele tocasse. Nos últimos anos, o barulho nos corredores aumentou significativamente, mas uma porta fechada restaurava a paz sem fazer-nos perder o contato com o mundo.
Ricardo de Mattos
Taubaté,
6/6/2011
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