COLUNAS
Terça-feira,
19/7/2011
Woody Allen quer ser Manoel de Oliveira
Wellington Machado
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Enquanto o mundo se encanta com Meia-noite em Paris, filme mais recente de Woody Allen, o diretor já trabalha em seu novo filme - pelo que se noticia, será gravado em Roma, com a atriz Penélope Cruz. Acostumado a andar com os bolsos cheios de papéis, contendo anotações de idéias para seus filmes, Woody faz de sua rotina um deleite: levantar cedo, exercitar o corpo na esteira, praticar clarinete, escrever roteiros, passear em algum parque de Nova York com a esposa e os filhos ou assistir a um jogo de basquete do Knicks.
Woody Allen é incansável. Bem próximo de completar 80 anos, com vigor de iniciante, o diretor mantém o pique e lança uma média de um filme por ano - além de tocar jazz em Nova York. Sem dar muita bola para a crítica, admite seus erros e ironiza os acertos. Qual a receita da sua longevidade produtiva? O segredo é que Woody não encara o cinema como trabalho, mas como parte integrante do seu cotidiano. Ele pensa em roteiros e em novas histórias até quando está em férias, sem se considerar um workaholic.
O lançamento de Meia-noite em Paris dá um novo fôlego à carreira do diretor. Já com a previsão de ser o seu filme mais bem-sucedido (o recordista é Hannah e suas irmãs[1986]), o diretor tem a oportunidade de ser "apresentado" a um público ainda "verde" em sua cinematografia. Woody Allen chegou ao shopping-center. Isso não quer dizer perda de qualidade ou um aceno ao mercado do entretenimento.
Meia-noite em Paris tem vários "apelos" não intencionais. Mistura realidade com fantasia, é filmado em Paris (com fotografia exuberante); carrega uma boa dose de humor, e traz de volta personagens centrais da história da arte, como Picasso, Matisse, Buñuel, Hemingway, Fitzgerald, Gertrude Stein etc. Por mostrar a Paris dos anos 20 de maneira apaixonada, torna-se inevitável uma menção a Manhattan (1979) - uma ode a Nova York. Mas a verdadeira ligação do filme, em termos de fantasia, metalinguagem etc., é com A rosa púrpura do Cairo (1985), com Mia Farrow. Há uma semelhança também, devido à sua paixão pela capital francesa, com Todos dizem eu te amo (1996)- o único musical em sua carreira.
É difícil apontar Meia-noite em Paris como o melhor filme de Woody Allen (há um burburinho nesse sentido na imprensa), pois sua carreira é eclética - esse tipo de análise tem de ser feita por estilo. O diretor transitou por vários gêneros. No início de carreira, houve um predomínio das comédias pastelão (Bananas [1971], Um assaltante trapalhão [1969]). Depois, veio a fase bergmaniana (A outra [1988], Setembro [1987] e Interiores [1978]). Neblinas e Sombras (1991) tem forte influência do expressionismo alemão. E Crimes e pecados (1989), Um misterioso assassinato em Manhattan (1993) e O sonho de Cassandra (2007) são policiais de primeira. Poderíamos dizer que Meia-noite... é o seu melhor filme no "nicho" fantasia.
Devido à sua intensa produção, Woody Allen vem alternando, nos últimos anos, grandes filmes com outros, digamos, mais básicos. Vick Cristina Bercelona (2008), Scoop (2006) e Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (2010) são filmes menores, despretensiosos. O problema é que a crítica cobra dele uma obra-prima a cada ano, nos moldes de Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) ou do próprio Manhattan. Mas a verdade é que Woody Allen não tem essa pretensão; ele está apenas brincando de fazer cinema. E mesmo de diversão, eventualmente faz um sucesso. Há vários exemplos. Ponto Final (2005) e Crimes e Pecados, dois filmes "dostoievskianos", comprovam a habilidade do diretor em fazer roteiros impecáveis. O sonho de Cassandra é uma incrível reflexão sobre os nossos dilemas morais. E Tudo pode dar certo (2009) - um filme preguiçosamente analisado pela crítica - traz embutida na trama uma contundente crítica social por trás do personagem interpretado por Larry David - um marido ranzinza se cansa da mesmice do casamento e do excesso de regras politicamente corretas; ele se revolta, abandona tudo e sai de casa para viver à margem de todos os preconceitos.
Os papéis soltos nos bolsos de Woody Allen são uma metáfora da sua desordem criativa. Um pouco desse seu universo neurótico está retratado em Conversas com Woody Allen, de Eric Lax. O livro reúne várias entrevistas concedidas pelo diretor, desde o início de sua carreira, organizadas por assunto. Lax é amicíssimo de Woody. Vem daí a total dedicação e detalhamento nas respostas por parte do diretor.
Inspiração nunca foi problema para Woody Allen. Ele sempre foi um escritor profícuo e compulsivo; uma fábrica de idéias. Quando surge um financiamento para um filme, ele recorre a sua gaveta abarrotada de papeletes com anotações feitas em hotéis, em aviões ou na rua. São idéias globais, pontos de partida para o desenvolvimento de roteiros.
O caldeirão de idéias de Allen não ocorre gratuitamente. Sua criatividade é fruto de leituras desordenadas, principalmente em literatura, filosofia, história e linguística. Por trás dos diálogos em seus filmes estão Nietzsche, Bertrand Russell, Platão, Camus e Sartre, seus filósofos preferidos. E vários de seus filmes são inspirados em obras literárias. Seus escritores preferidos são Hemingway, Faulkner, Steinbeck, Shakespeare, Dostoiévski, Tolstoi, Tchekov, dentre outros.
Woody Allen pode não ser um diretor genial, mas com certeza é um dos mais completos da história do cinema. Poucos diretores tiveram tamanho domínio do trabalho, em sua completude, como Woody Allen. Além de dirigir, ele escreve os roteiros, atua em vários filmes, escolhe a trilha sonora (às vezes a executa) e trabalha incansavelmente na mesa de montagem. Além de, fora do cinema, escrever peças de teatro e contos para a revista New Yorker.
Aos 76 anos, Woody Allen diz que "trabalha para enganar a morte". O cinema é para ele um vício; nem pensa em se aposentar. Manoel de Oliveira, com seus 103 anos, é o mais velho diretor em atividade no mundo. Mais do que fazer bons filmes - e fazer disso um prazer diário -, Woody Allen quer mesmo é ser Manoel de Oliveira, ou seja, viver.
Wellington Machado
Belo Horizonte,
19/7/2011
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