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Quinta-feira, 25/8/2011
O cinema visita a funilaria
Vicente Escudero
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Não tenho a menor ideia de como a matéria-prima do desmanche pode voltar a se transformar num carro novo, zero quilômetro, depois de ser amassada numa prensa gigante e terminar como uma grande massa de metal retorcido do tamanho de um container. Entre a destruição do carro antigo e a produção do novo, imagino uma dezena de etapas em que homens projetam o modelo, soldam várias partes para completar o chassi, montam a carroceria e testam o resultado para descobrir se ele é capaz de rodar por aí. Todo esse processo acontece dentro de uma fábrica barulhenta e repleta de ferramentas afiadas, maçaricos comandados por robôs e homens uniformizados executando tarefas repetitivas e monótonas, apertando sempre as mesmas peças de carcaças transportadas sobre esteiras mecânicas. Quanto maior o carro, maior e mais insuportável o barulho da linha de produção que resulta num grande processo de acumulação e entulhamento, terminando com um SUV saindo pelo portão da fábrica, depois de causar surdez em todos os funcionários.

Todo este processo estapafúrdio de agigantamento dos carros da atualidade só poderia ser celebrado em alto e bom som com um filme ainda mais barulhento do que uma montadora atacada por vikings. Pior ainda, por uma série de filmes em que homens são atacados por carros invadidos por robôs alienígenas. Apresentada assim, desmontada e sem lubrificantes (fundida?) a trilogia cinematográfica de Transformers parece ainda fazer algum sentido. Mas, não se anime. Contenha a faísca de empolgação. Se você assistir a sequência de filmes vai perceber que a passagem de um para o outro não obedece a nenhuma lógica de roteiro e é apenas coerente num sentido: a destruição de cidades e robôs, as explosões e lutas aumentam exponencialmente a cada título da série. O que poderia ser um bom argumento para explorar o tema do conflito entre inteligência artificial e humana não passa do desmoronamento de uma pilha de carros num desmanche. Os robôs alienígenas, como eles nascem, são criados, montados ou reciclados? Aliás, a inteligência dos robôs é exclusivamente artificial? Nem isso os filmes respondem.

No último filme da série, "O Lado Oculto da Lua", a história é desconexa e o argumento é pobre. Os diálogos, quando não são onomatopeias costuradas, apresentam-se como variações dos roteiros dos primeiros filmes. Não espere respostas sobre as origens dos robôs ou motivações dos personagens. Todos os diálogos servem apenas para interromper a destruição, representam um gongo soando entre os rounds de uma luta desigual entre homens e robôs.

Os autobots vivem em paz com os seres humanos depois de terem derrotado os decepticons. Mas um segredo escondido pelos humanos coloca a Terra em risco. Durante a primeira visita do homem à Lua, foram descobertos destroços de uma nave utilizada pelos autobots para fugir de seu planeta natal (Cybertron), durante a guerra com os decepticons, que carregava o líder científico dos autobots e o material necessário para salvar Cybertron. Os decepticons, exilados em algum lugar da África, descobrem o paradeiro dos destroços e traçam um plano para enganar os autobots e escravizar a humanidade, mão de obra a ser utilizada para reconstruir Cybertron, a partir dos restos da nave.

O roteiro não faz sentido. Os humanos que não fazem parte do governo americano sabem da existência dos autobots na Terra? Considerando os filmes anteriores, sim. De acordo com o último filme, não, afinal, os camaradas dos autobots tentam esconder a presença dos alienígenas de outros humanos a todo custo. Como os decepticons conseguiram se reorganizar depois de serem derrotados no último filme? Não se sabe. De onde vieram os decepticons que não estavam nos outros filmes? Ninguém sabe. Durante o filme todo, a única tentativa de explicação é hilária. Quando Optimus Prime é questionado pelos militares sobre a identidade de Sentinel Prime, afirma, sem nenhum rubor nas bochechas de alumínio "Ele é para nós, como o Einstein do planeta de vocês". Alguém deveria pintar a lataria do caminhão de vermelho.

O avanço da cultura nerd tem impregnado o cinema de clichês que tratam de forma superficial temas científicos e tentam conciliar ideias que não se misturam. Começando pela avalanche de apocalipses representados nos últimos filmes de super-heróis como Thor, Watchmen e X-Men, que tentaram levar a narrativa dos quadrinhos e desenhos animados para fora da fantasia, construindo roteiros pretensiosos, muitas vezes tentando misturar ciência até com magia e religião. X-Men tentou ligar os pontos entre as relações sociais e os avanços da medicina, narrando histórias de jovens que sofreram mutações em seu código genético e se tornaram capazes de emitir raios laser, fogo, gelo e atrair metais, contrariando as leis da física, medicina e química. Watchmen criou um mundo distópico e noir, habitado por super-heróis sofrendo as limitações da idade avançada, onde a pancadaria é acompanhada pela trilha sonora de... jazz! Thor não economizou na absurdez. O mundo habitado pelos seres da mitologia nórdica mistura magia e astronomia sem dar qualquer pista sobre a origem da civilização de Asgard nem sobre sua pródiga capacidade de produzir wormholes.

O maior problema enfrentado pelos roteiros de filmes que misturam ficção científica e fantasia é a sutileza na mistura desses elementos, seu equilíbrio, única fórmula capaz de suspender a realidade e tornar críveis acontecimentos absurdos. Em determinados casos, o melhor a fazer é não escapar da fantasia, manter a história apenas no terreno do absurdo, sem tentar justificar por que uma pessoa viaja no espaço, voa, atira bolas de fogo ou tem uma força descomunal. Se os fatos narrados são impossíveis no mundo real, não devem ser misturados com explicações de origem científica, como na série X-Men. Nunca um ser humano vai atirar raios laser pelos olhos. Isso é indiscutível. A representação de algo desse tipo dentro de um contexto que reproduz o tempo presente da humanidade é uma tolice. A única forma palatável de apresentar um personagem desse tipo é inseri-lo dentro de um contexto completamente fantástico, sem discussões científicas, políticas ou sociais fajutas. Por que não restringir o roteiro a uma distopia, em vez de emprestar a urgência das discussões do mundo real?

Contrapondo-se a estes erros de Thor e da série X-Men, as séries Batman (de Christopher Nolan) e Iron Man (de John Favreau) trabalham as limitações de seus personagens e da realidade que os cercam sem deixar pontas soltas sobre a origem dos poderes que envolvem heróis e vilões. No caso de Batman, os filmes têm o cuidado de limitar as capacidades do herói ao ambiente que o cerca e à sua condição humana, transformando-o em um personagem com defeitos e qualidades ordinárias. A parte fantástica da narrativa fica para a personalidade degenerada dos inimigos e para as traquitanas tecnológicas utilizadas nas batalhas. Mesmo estas representações são trabalhadas de forma a esticar ao máximo, mas sem cruzar, a linha que divide o possível do impossível para o ser humano. Já em Iron Man, a maior qualidade é a interpretação divertida de Robert Downey Jr., o verdadeiro responsável pelo carisma do protagonista e até pelo sucesso do filme. O oposto do protagonista de Thor.

A linguagem dos quadrinhos e desenhos animados, na sua origem, fundou-se na fantasia e nas aspirações de criadores buscando a representação de histórias que habitavam o imaginário de crianças e adultos. É fenômeno recente a importação de outras linguagens para dentro destas artes e vice-versa, como a invasão de filmes de super-heróis no cinema. A julgar pelas séries Transformers e X-Men, e filmes como Watchmen e Thor, esse processo de transformação continuará espalhafatoso, barulhento e, para os fãs de desenhos animados e quadrinhos, muito dolorido.


Vicente Escudero
Campinas, 25/8/2011

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