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Terça-feira,
16/8/2011
A sete palmos, inevitavelmente
Wellington Machado
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O estereótipo do conservador, principalmente o retratado no cinema americano - e é o que mais nos atinge e influencia - é conhecido: personagens antiquados, trajando roupas sóbrias; são quase beatos que se horrorizam com a minissaia de uma colegial. Sua frase predileta é "o mundo está perdido". Clama a Deus-pai em tudo o que arranha a moral religiosa e não abre mão do sentido agregador familiar, tutelando todos os movimentos dos filhos. Comporta-se como uma galinha protegendo seus ovos, num anacronismo contemporâneo surreal. O conservador, submetido à acuidade de uma lente ou a algumas taças de "vinho báquico", desnuda seu véu, seu freio ultramoral, e cede ao devaneio, à desmedida e ao sexo sem culpa.
O contraponto do conservador é o atiçador, detentor daquela inquietante voz interna, do escárnio do "capetinha vermelho" (também um estereótipo); o "gênio maligno" de Descartes, que nos incomoda o ouvido incitando-nos a transgredir a moral convencionada. O atiçador não se apoia em eufemismos. Ele nos chama de covardes quando não assumimos a nossa real vontade interior em prol de uma "normalidade" familiar ou social. O que seriam das relações sociais, das amizades sem os eufemismos? A necessidade de demonstrar uma certa polidez estreita ao máximo a fronteira entre o eufemismo e a hipocrisia.
A lente reveladora e o "vinho báquico" que liberta as amarras morais estabelecidas são a tônica da série A sete palmos: desvendam um cenário cru da família Fisher, dona da Fisher & Sons Funeral Home - de uma maneira direta, uma funerária que prepara (maquia) os corpos no subsolo para serem velados na antessala. A empresa funciona no andar de baixo da casa onde mora a família.
A mãe, Ruth, herdou a empresa depois da morte (no primeiro episódio) do marido Nathaniel - que se envolveu em um acidente de carro. Coube aos filhos Nate e David administrar a funerária, já que a filha Claire é ainda adolescente. Ruth é a conservadora. Nathaniel atua depois de morto como um fantasma que dialoga com a esposa e os filhos; é o "gênio maligno" que incomoda e atiça a todos a dar voz às suas reais vontades internas.
Ao contrário da maioria das séries e filmes americanos, nos quais as questões psicológicas e sociais se resolvem (em sua maior parte, de maneira positiva), A sete palmos inova ao evidenciar a decadência de pessoas comuns sem apelar para manobras sentimentalistas ou subterfúgios de roteiro para prender o espectador. A série aborda o declínio (sem superação), a descartabilidade e a infidelidade nas relações amorosas; o desespero ante a falta de referências, bem característica dos nossos tempos. Na família, uns pagam caro por seus rompantes, suas atitudes imediatistas e impensadas; outros, por tentarem se adequar aos tipos conservadores.
O filho Nate é um retrato da vontade interior esgarçada; o autêntico dionisíaco reprimido. Com a morte do pai, tem de assumir a empresa a contragosto. Passa de playboy bon vivant a gerente de funerária. Vive uma paixão platônica por Brenda, uma ninfomaníaca que o trai com qualquer homem que aparece em sua frente. A decadência de Nate se inicia quando é acometido por um grave tumor cerebral, retirado em uma complicada cirurgia. Ele "renasce" da operação buscando uma nova forma de vida, talvez mais responsável, dentro dos perfis familiares comuns. Descobre que vai ter uma filha com Lisa, com quem tivera um relacionamento relâmpago antes da cirurgia. Eis o seu dilema afetivo: venera a ninfomaníaca Brenda, mas cede à "normalidade" casando-se com Lisa.
O ponto alto da série, na verdade um ato de coragem dos autores, foi ter encarado de forma arrojada o tema da homossexualidade, evidenciando todos os seus preconceitos, dificuldades de relacionamento e infidelidades. O filho David, gay, vive uma intensa relação com um policial, sofrendo preconceitos dentro da própria casa (na figura da mãe conservadora) e da família do parceiro. O relacionamento dos dois é ao mesmo tempo intenso e conturbado, com altos e baixos, permeado por momentos de infidelidade dos dois lados. O personagem de David serve também como um álibi para abordar a polêmica entre religião e homossexualismo. Devoto, David foi alçado à posição de líder religioso (palestrante-pregador), mas logo foi afastado quando descobriram sua opção sexual.
A parte mais dionisíaca da sociedade é retratada na figura da filha Claire. Adolescente, estudante secundária, ela é a personagem com um viés mais artístico, liberal, afeita à desmedida. Ela é o retrato da descartabilidade contemporânea. Tem vários relacionamentos, mas sempre muito curtos, nos quais é sempre preterida. Sua vida, apesar de intensa (repleta de drogas, sexo, artes em geral) é um vazio só. Claire não consegue se acertar.
Em geral, os indivíduos da família Fisher tentam superar seus conflitos internos e obter algum sucesso em seus relacionamentos afetivos. Os nervos se acirram com a iminência da empresa ser encampada por uma forte concorrente.
Cada episódio de A sete palmos inicia-se com uma morte acidental ou abrupta (de um futuro cliente dos Fisher, claro). Talvez a morte sirva como uma metáfora para um inescapável fosso psicológico, quiçá uma punição pelas escolhas hedonistas ou inconseqüentes dos indivíduos. No caso dos Fisher, a sombra de um corvo está sempre à espreita, mas cada vez mais próxima, "palmo a palmo".
Personagens em conflito, ninfomaníacos, esquizofrênicos e drogados (sim, eles fazem parte da nossa realidade) são tratados na série sem a chance de superação que lhes é atribuída pelas produções americanas - geralmente elas tratam essas patologias sociais de forma caricatural, buscando entreter. A sete palmos traça o perfil de uma sociedade nos moldes do recente romance Liberdade, de Jonathan Franzen. Mas o interior de seus personagens está repleto mesmo é de Freud e Dostoiévski.
Wellington Machado
Belo Horizonte,
16/8/2011
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