COLUNAS
Quinta-feira,
15/9/2011
O ponto final da escrita cursiva
Vicente Escudero
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Carta de J.D. Salinger
O campo minado da informatização e da internet, sabotador de ofícios e hábitos antigos, tem feito vítimas seguidas a cada duplicação da capacidade de processamento dos chips de computadores nos mesmos limites da Lei de Moore. Se o número de transistores que podem ser colocados dentro de um microprocessador duplica a cada dois anos, o número de vítimas deste avanço no processamento de dados não fica para trás. Em menos de dez anos de disponibilidade ampla da web, livros, telefones domésticos, hábitos de consumo e formas de ensino virtualizaram-se quase destruindo os nichos destes produtos e serviços no mundo físico. Este fenômeno, que pode ser denominado desconcretista, veio acompanhado da exigência de uma nova forma de pensar e de interagir com a realidade. De repente, o curso de datilografia, muito procurado até o meio da década de 90, foi trocado pelo de informática. Hoje, os efeitos destas transformações são tão grandes que a linguagem reproduzida nos computadores caminha para substituir um hábito muito mais antigo do que as outras vítimas que tentaram atravessar o terreno cibernético, como o jornalismo, os livros em papel e o ensino presencial. O alvo da vez chama-se escrita cursiva.
Não é novidade que a escrita cursiva sofreu um wazari com a popularização da informática e se esquiva diariamente contra um ippon da troca de informações instantâneas da internet, ainda mais agora, com a larga vantagem dos e-books sobre o papel. O dado novo interessante, que muda o prognóstico da luta -e talvez a defina- é a adesão à idéia pelo governo americano. Desde março de 2011, as diretrizes básicas da educação do governo federal dos Estados Unidos descredenciaram o ensino da escrita cursiva do currículo obrigatório das escolas. Agora, o ensino da matéria é opcional nos estados que aderirem à orientação proposta pelo governo federal, que até esta data conta com quarenta e uma unidades federadas participantes.
A discussão mal começou e dois grupos bastante distintos já marcaram suas posições. A maioria dos mestres e estudiosos da língua inglesa defende o caráter suplementar do ensino da escrita cursiva, enquanto pais e docentes do ensino fundamental defendem a obrigatoriedade.
Os mandatários da permanência da escrita cursiva no currículo obrigatório defendem a utilização da técnica não apenas pela sua função básica de comunicação, mas também pelo fato do aprendizado da escrita cursiva se tratar de um instrumento para o desenvolvimento motor dos estudantes em formação. Este argumento está conjugado com outro, de que o desenvolvimento da reflexão intelectual pelos estudantes necessariamente passa pelo aprendizado desta técnica, pois a escrita cursiva exigiria um grau muito maior de atenção e reflexão para transcrição das idéias no papel, já que diminui a quantidade de distrações entre o pensamento e a sua concretização, situação muito diferente da que ocorre na utilização exclusiva de meios digitais, em que a transmissão dos dados é realizada através da digitação.
Do outro lado da querela estão os defensores da orientação adotada pelo governo americano, que caracteriza a escrita cursiva como opcional dentro do currículo de matérias do ensino fundamental. Embora este grupo esteja dividido em duas correntes, ambas estão fundadas no mesmo argumento: o ensino da matéria não é mais imprescindível. Uma destas correntes de pensamento defende que todas as formas de escrita à mão são completamente desnecessárias e podem ser substituídas integralmente pela utilização de meios digitais, mesmo nas situações que requerem a presença física da pessoa, como a utilização da assinatura para sua identificação, a qual já pode ser substituída por dispositivos contendo assinaturas digitais. A outra corrente não defende esta repentina quebra de página no livro da escrita cursiva, apesar de também entender que a orientação do governo é adequada. Para seus defensores, o desenvolvimento tecnológico ainda não é capaz de substituir de forma infalível a comunicação através da escrita à mão, o que ainda torna imprescindível o aprendizado de pelo menos uma de suas formas: a escrita através de letras desconectadas entre si, as letras de fôrma.
É interessante notar que a orientação governamental não impede que o ensino da escrita cursiva seja realizado mesmo nos estados que a adotarem. Dentro do sistema de educação americano, que possui como fundamento principal de organização a participação da sociedade local nas escolas, soa estranho que a simples caracterização do ensino da disciplina como opcional tenha causado uma revolta generalizada dos pais, defendendo a manutenção da obrigatoriedade. Neste período de mudanças drásticas em hábitos seculares, em que o envio de cartas foi substituído pelos e-mails, os jornais estão à beira da falência e o comércio não exige mais a existência de um balcão para atender a clientela, não é difícil concluir que o conflito criado pela medida é muito mais geracional do que didático ou, até mesmo, utilitário. Estariam os pais com receio de ver um hábito tão arraigado em suas personalidades ser deixado de lado por uma geração que passa grande parte do dia se comunicando, quase de olhos fechados, através de celulares, tablets e afins? O desaparecimento de um hábito tão particular e íntimo parace ter atingido um dos maiores medos da geração que está criando seus filhos no século XXI: o de tornar-se obsoleto.
Nos últimos vinte anos, no mínimo, o foco das escolas no Brasil e nos Estados Unidos tem sido garantir que os alunos produzam uma escrita utilitária, no mínimo legível. Este processo passa pela grafia correta das palavras somada à flexibilidade na utilização da escrita cursiva junto com as letras de fôrma. Também é fato incontestável que a maioria dos adultos acaba desenvolvendo, com o passar do tempo, uma mistura de escrita cursiva com letras de fôrma, um método próprio que atende às próprias necessidades, isso quando não ocorre o abandono completo da escrita cursiva para dar lugar a letras de fôrma. O caráter instrumental da escrita, no final, sempre acaba prevalecendo. Sorte para quem sempre foi péssimo aluno de caligrafia.
O momento atual, muito mais do que um avanço para a incorporação da escrita no processo de informatização, representa o retorno do estilo da cursiva romana, em que a maioria das letras não é conectada. Difícil imaginar um mundo onde ninguém é capaz de escrever um bilhete para avisar que vai voltar logo. Os computadores venceram, isso é indiscutível. O difícil é encontrar um que não esteja coberto com recados em adesivos Post-it.
Vicente Escudero
Campinas,
15/9/2011
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