COLUNAS
Sexta-feira,
14/10/2011
Meu carcereiro predileto
Ana Elisa Ribeiro
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Eu fui uma criança que teve férias. E não eram parcos quinze dias e nem um mês de penúria, com intervalos de praia entre as férias do pai e da mãe não. Eram férias, com F maiúsculo, se fizer mais sentido. Terminávamos o ano no final de novembro e só aparecíamos na escola de novo em fevereiro, às vezes mesmo depois do Carnaval. E nesse intervalo grande, podíamos brincar na rua, acordar tarde, andar de bicicleta, soltar pipa, brincar de guerra de mamona, dar os primeiros beijos, ir a festas juninas (quando era meio de ano) ou planejar o amigo oculto do Natal (quando era dezembro). Também podíamos sonhar com os dias na praia (coisa bem mineira, uma espécie de conquista do paraíso). Férias eram meses de dispensar os relógios e os despertadores.
Bom, mas vejo que essa narrativa aí é unilateral demais. Meus pais contariam uma outra história, talvez. Ambos trabalhavam fora, ainda o pai mais do que a mãe, e para eles aqueles longos meses talvez fossem desesperadores. No caso particular desta cronista, éramos quatro (4!) crianças, com dois ou menos anos de diferença entre uma e outra, pulando e correndo pela casa, querendo dormir e acordar tarde, sem para casa ou tarefa que as entretivesse, preocupados com nada e torcendo para que os dias letivos nunca mais voltassem.
Como equilibrar quatro crianças em um prato? Como oferecer lazer a quatro pirralhos ansiosos? Eram quatro para brincar, brigar e pedir atenção. Naquela época ao menos havia o fato de que irmãos se distraem uns aos outros. Nem sempre queríamos a presença da mãe (muito menos a do pai). As confusões aconteciam escondidas e ficávamos nos dando cobertura quando o resultado podia gerar castigo. Quatro piás de férias escolares.
Mas as férias eram aguardadas ansiosamente. O sonho da praia era também dos nossos pais. Eles ajustavam seus períodos de descanso ao nosso e íamos todos para a beira do mar, tomar sol e fazer o que nos parecia o máximo da falta de rotina. Era assim que compensávamos os árduos dias de aula, com tarefas todo dia, deveres, compromissos, provas, chamadas e pontos.
Mas os dois lados desta questão ainda não são suficientes para dar conta deste complexo cenário. Falta o professor, figura central na escola. Os professores (e professoras, mais ainda) passavam o ano lidando conosco, em turmas onde se concentravam cerca de quarenta filhos dos outros. Naquela época, em geral, eram graduados, poucos deles talvez especialistas (não se falava tanto em formação continuada). Davam a matéria, nem sempre em aulas vivas e dinâmicas. Lembro-me especialmente daqueles que nos despertavam alguma admiração: o químico que tinha livros publicados e tomava conta do laboratório, a autora de apostilas de cursinhos famosos, o professsor de literatura que era ator, a mestra que havia morado fora do país. Eles cumpriam horários, reuniões (inclusive aquelas intragáveis com pais), faziam provas e materiais, levavam pilhas e pilhas de textos e provas para corrigir em casa, davam feedback a estudantes desinteressados, suportavam a absoluta falta de educação de alguns semidelinquentes e ganhavam, como todos nós sabíamos, um salário ruim.
Com a carga horária deles, talvez fosse impossível estudar. No entanto, naquelas décadas, o conhecimento não circulava assim, a torto e a direito, como hoje. Os livros e as escolas ainda eram os espaços de saber que deveríamos acessar apenas com mediação. Não éramos pimpolhos conectados desde o berço, como podem ser as crianças de hoje (podem...). Éramos guris que dependiam, em larga medida, do que víamos na escola, do professor que tínhamos, das condições dos pais.
Depois que saí da escola básica, só soube das mudanças de orelhada. Não me comprometi mais com isso, exceto porque atuei como professora de ensino fundamental ou médio em alguns períodos. Os dias letivos aumentaram, as férias encolheram muito, os pais saíram mais ainda de casa, a educação se transferiu ainda mais para os educandários e o salário do professor continuou ruim.
Dia desses eu soube que se está a inventar mais vinte dias para o ano letivo. Pensei logo no meu filho, que tem parcas férias de quinze dias em julho e quase chega em casa para lanchar com Papai Noel no final do ano. As aulas não terminam nunca, assim como os lanches e a necessidade de lavar uniformes. As férias são espremidas, inclusive na praia, e logo se recomeça o que mal acabou.
O professor, de novo ele, trabalha mais e, de forma alguma, trabalha melhor. Tem aumentada sua carga letiva, reduzido seu descanso e nem se toca em seu salário. Frequenta mais reuniões, mais discussões, dá muito mais aulas, corrige mais provas, acessa mais softwares (o trabalho da secretaria foi transferido para ele, depois das novas tecnologias) e, básico, não tem tempo para estudar. Para cumprir as centenas de dias letivos devidos, o professor não pode se ausentar da escola, o que o deixa na condição de mediador quase transparente entre o conhecimento que alguém produz acima dele e os estudantes que nem sempre vêm ávidos por conhecimentos escolares.
Professor tem de estudar. Isso é uma máxima indiscutível. Não, não é. Ou melhor: é apenas uma máxima que não pode ser verificada. Grande parte dos professores que atuam no ensino básico parou de estudar quando se formou na graduação (nem sempre bem-feita). Como é possível algo assim nos dias de hoje (se já era condenável nos dias de ontem)? Uma das atribuições do professor, friso, é estudar. Estudar para saber mais, estudar para se atualizar, estudar para manter o hábito, estudar para motivar os outros, estudar para dar o exemplo, estudar para saber o que se passa com esses meninos nascidos nos 1990, 2000. Professor é estudante. Antes de qualquer coisa, professor precisa saber a quantas andam os conhecimentos (conceituais e procedimentais) de sua área e de outras, em tempos de redes, conexões e intercâmbios de toda sorte. Professor tem de usar tecnologias, professor tem de trocar informações, professor tem de ir a fóruns, congressos, seminários. Professor é aluno.
Mas quando é que se vai pensar nisso? Quando é que se vai entender que professor bom (bem-formado) faz diferença na escola? Quando é que se vai admitir que quantidade de dias letivos não significa qualidade de aulas ou de condições para a educação? Quando é que professor vai ser respeitado? Quando é que professor vai ser considerado um cara que trabalha pra caramba? Quem convive com professor em casa sabe: finais de semana e feriados tomados pela correção disto e daquilo, pelos feedbacks aos alunos, pelas tensões do dia a dia. Quem se casou com professor(a) ou quem tem pai/mãe professor sabe o que é distrair a turminha com carimbos e com o preenchimento de diários de classe. Quem tem professor em casa sabe como é ir para a praia com aqueles livros e textos dentro da mala.
Mas vamos aos 220 dias letivos, minha gente. Vamos transformar o professor num carcereiro, que é isso que querem mesmo fazer.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
14/10/2011
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