COLUNAS
Quinta-feira,
10/11/2011
Zona de rebaixamento da transmissão esportiva
Vicente Escudero
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Estrangeiros sofrem com as dificuldades impostas pelo nosso departamento de imigração, que segue um conjunto de regras mais rigoroso do que o de muitos países de primeiro mundo. No contato inicial, o interessado em permanecer no território tupiniquim sofre o primeiro revés, um ataque contra a imagem tradicional da cordialidade cotidiana entre pessoas que habitam este lado do paraíso. Filas de espera intermináveis, exigências contraditórias e xícaras seguidas de chá de cadeira constituem alguns dos fortes argumentos que podem levar o sujeito a desistir de virar a casaca e determinar seu retorno para casa.
Mesmo depois de aprovado pelo caminho da via crucis, de aceitar carregar a cruz em tais corredores da burocracia de nosso humilde país em desenvolvimento, todo estrangeiro aprovado no processo de permanência no Brasil deveria ser avaliado num último teste, simples, de no máximo meia hora (não é nossa intenção matar o candidato nem violar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos), dentro de um novo dispositivo denominado "Câmara Esportiva".
O candidato a abrasileirar-se ou a habitar de forma não transitória nosso território, depois de uma bateria de testes para comprovar sua aptidão física e mental e assinar um documento concordando com o teste, é levado a uma sala com proteção acústica contendo apenas mesa, cadeira e televisão. Durante a meia hora seguinte, depois do trancamento da porta, a televisão é ligada em alto volume, iniciando a transmissão de uma partida de tênis de mesa entre Brasil e México dos jogos universitários de uma obscura Liga Interamericana . O narrador brasileiro segue imparcial, narrando cada ponto em staccato, até o momento em que o jogo empata, o mexicano consegue tomar a liderança e abre uma vantagem significativa, indiferente ao crescendo do narrador brasileiro, transformado em protagonista de uma ópera bufa narrando a história de alguém que está prestes a ser derrotado, mas que será defendido pelo barítono até o encerramento da partida, pela galhardia e amor à camisa na defesa da grandeza de nossa pátria.
Sobrevivendo ao primeiro estágio, o candidato passa a ser testado com altas doses de bordões esportivos de modalidades diversas, desde comentaristas de futebol vociferando "É brincadeira!" a cada passe errado, "A regra é clara!" nos cartões amarelos, até partidas de vôlei com repetições seguidas de "Giba neles!" e gritos de "É ponto! É ponto! É ponto do Brasil!".
Depois de quinze minutos, se o candidato não estiver em coma ou em estado de choque, a televisão começará a transmitir a terceira e última etapa, dose quase letal de ufanismo intra-auricular: uma corrida de Fórmula 1 com os brasileiros ocupando as últimas posições, narrada por comentaristas repetindo "Nossos pilotos fazem uma boa prova!", "A escuderia favorece o companheiro de equipe...". A partir deste instante e durante os últimos dez minutos de transmissão, caixas de som escondidas nas paredes da sala começam a tocar o Tema da Vitória até o encerramento da sessão, quando todos os pilotos brasileiros já terão abandonado a prova.
E o candidato provavelmente vai se perguntar, se sair vivo da Câmara Esportiva, se em algum dos documentos que assinou para regularizar sua situação no Brasil estava escrito que era proibido criticar ou abster-se de torcer pelo Brasil durante qualquer evento esportivo. Se é errado entrar num estádio de futebol para assistir uma partida entre equipes que ele não torce ou, pior ainda, se todos os atletas brasileiros são sempre melhores do que qualquer adversário. Por que nossa transmissão esportiva, as redes de tevê aberta, estão repletas de fanáticos valorizando tanto as vitórias, o caráter de disputa dos esportes, enquanto a maioria da audiência só quer um pouco de diversão?
É certo que a neutralidade não passa de um desejo. Ninguém é capaz de acompanhar sequer uma partida de dados sem torcer pela vitória de um dos apostadores, mas todos esperam que o crupiê e a platéia não opinem sem parar sobre as jogadas de cada um. Se o sujeito ganhou, que apenas receba um elogio. Se saiu derrotado, um simples desejo de boa sorte para a próxima vez. Tanto uma reação quanto a outra emanam da humildade do homem perante a aleatoriedade de determinados acontecimentos. E haja estoicismo para sair calado da mesa de apostas depois de ter perdido muito dinheiro!
Por que não adotar essa postura moderada também na cobertura esportiva, principalmente na transmissão de partidas ao vivo? A crítica poderia ficar para depois, em programas de entrevistas, mesas redondas, etc. Não se trata de banir a análise dos fatos, apenas postergá-la. O boxeador está apanhando, mas a qualquer momento pode soltar um direto de esquerda e nocautear o adversário. O time está perdendo por um gol, mas em cinco minutos pode fazer três e virar o jogo. Algumas definições também precisam ser usadas no momento certo. A última moda entre os comentaristas ligeiramente moderados, autodenominados técnicos, é opinar sobre a justiça dos resultados. Se uma equipe atacou mais durante o jogo, mas a outra acabou vencendo com um gol contra, o resultado foi "injusto". Ora, justiça no esporte é o cumprimento das regras e do fair play. Se um time jogou muito melhor e foi derrotado dentro dessas regras, o resultado não foi injusto. Desde quando os resultados nos esportes não são mais aleatórios, mas apenas um conjunto de fatores que precisam ser equacionados para alcançar um resultado específico? O treinamento, somado ao número de assistências e chutes a gol equivale ao resultado? Enquanto tais comentaristas não ficarem ricos apostando na Loteca, suas análises continuarão na zona de rebaixamento.
Tenho o hábito de acompanhar os jogos de futebol ouvindo a narração do rádio enquanto assisto televisão. A vantagem do radialista narrador é que ele não pode parar para comentar a partida. E, quase sempre, também é mais bem humorado do que os comentaristas televisivos. E menos patriota. Por isso, torço para que o Ministério do Turismo recomende aos visitantes estrangeiros da próxima Copa do Mundo e das Olimpíadas que não se esqueçam de trazer seus iPods, afinal, é inútil para o Brasil correr o risco de uma seleção de maus comentaristas transformar as próximas grandes competições em imbróglios diplomáticos.
Vicente Escudero
Campinas,
10/11/2011
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