COLUNAS
Segunda-feira,
6/2/2012
Deus: uma invenção?, de René Girard
Ricardo de Mattos
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"Sabemos pouco de sua vida, porém esse pouco mostra que, a rigor, não necessitamos saber mais" (Ortega y Gasset).
Desde o ano passado a variada obra do professor franco-americano René Girard (1923) vem sendo traduzida para o português e seguidamente lançada no Brasil. Até o momento, dos cerca de sessenta livros prometidos, mais de uma dezena encontra-se à disposição do público leitor. A coleção com seu nome, contudo, inclui títulos de outros autores. Girard nasceu em Avignon e aos 24 anos mudou-se para os Estados Unidos da América, onde desenvolveu sólida carreira acadêmica. É o criador da teoria mimética, segundo a qual e em poucas palavras, é inerente à humanidade a imitação - a mimesis dos gregos e a imitatio dos latinos - , imitação não só do comportamento e da fala como também do desejo. À medida que duas ou mais pessoas desejam um objetam e percebem o desejo concorrente, estabelece-se a dinâmica social de conflitos e soluções.
Dos títulos disponíveis, escolhemos Deus: uma invenção?. É a apresentação textual do debate travado entre Girard, André Gounelle e Alain Houziaux. Gounelle é teólogo protestante, professor e escritor. Houziaux, também é protestante, exercendo atividades de pastor, escritor e acadêmico. Embora apresentado como antropólogo - quiçá pretendendo-se apresentar um diálogo entre Ciência e Fé - Girard deixa transparecer nítida vinculação ao pensamento cristão-católico.
Uma invenção. Os debatedores, de visível preparo nas lides acadêmicas, esmiuçaram de tal forma os termos da questão titular que afastaram qualquer ilusão de simplicidade. Longe de ser algo fastidioso - embora tangencie a sexualidade angélica - o aprofundamento permite ao leitor afastar-se do senso comum e fornece-lhe novas pistas para suas próprias reflexões. Quanto ao termo "invenção", entre as acepções oferecidas encontram-se as da corrente ateísta européia do século XIX, a projecional, a da descoberta e a da inserção. Neste aspecto, forçoso dizer, os debatedores envolveram-se de tal forma com argumentos filosóficos, teológicos, psicossociológicos, etc., que o leitor só chegara a uma conclusão a respeito da existência divina - ou não - caso continue por si a investigação e acresça o que colher de outras fontes.
René Girard
O debate inicia-se com a exposição do pastor Houziaux. Seu capítulo denota que ele fez o dever de casa, selecionando teses não apenas a respeito de uma invenção de Deus mas, também, sobre a possibilidade de provar ou não Sua existência. Seu raciocínio lógico é exemplar, mas conclui pela invenção... Denuncia sua fé em Cristo, porém em relação a Deus, justifica-se com a parábola do cego que conduz uma tocha: respeita a luz que conduz, apesar de impedido de vê-la. Depois de tudo que reuniu, suas afirmações a respeito do Reino de Deus não convencem muito. Por vezes, fica difícil saber em que time, afinal, ele joga. Apesar dos pesares, coube-lhe enunciar uma verdade: "seria desejável que voltássemos a uma concepção de Deus mais modesta, menos dogmática e, de preferência, mais simples".
Si Houziaux encerra sua fala afirmando que Deus é uma invenção, Girard inicia a sua de forma peremptória. " 'Deus é uma invenção?', eis uma pergunta à qual respondo sem hesitar: 'Não'". Faz assim sua profissão - ou confissão de fé, mas envereda pela explicação a respeito da teoria mimética e afasta-se do cerne da questão. No pequeno debate dentro do capítulo de Girard, Houziaux revela ser esta uma impressão comum: "Deus aparece como personagem num jogo social, num funcionamento que o senhor descreve de maneira bastante convincente. Mas (afinal de contas!, acrescentamos) Deus existe independentemente dos homens?".
Alain Houziaux
Gounelle é o terceiro participante. Si há fala que nos irrita particularmente é esta de se dizer que algo possui as duas características investigadas, tentando-se assim agradar a gregos e troianos. "Tal coisa é branca, mas também é preta". Diga-se logo que é cinza, ou crie-se coragem e afirme ser amarela e pronto. Superada esta primeira má-vontade, erguemo-nos para proclamá-lo como o melhor debatedor. Dos três, é o mais ilustrado e inspirado. Ele quem melhor explica que a acepção usada do termo "invenção" na pergunta condiciona a resposta. Girard acusa-o de "religiosamente correto" - expressão que adotamos incontinenti - por fazer demasiadas concessões ao ceticismo contemporâneo, mas esta é uma opinião que não compartilhamos.
Segundo anotado por Kardec, falta ainda ao homem um sentido(sens) para compreender a natureza íntima de Deus, sentido este obtenível mediante a evolução espiritual. Interrompendo um afastamento vintenário, estivemos recentemente numa praia, para onde levamos as reflexões suscitadas pela obra. Como não usufruímos o dom da ubiqüidade, contentamo-nos com as paisagens alcançadas por nossa vista limitada pela fisiologia, pela geografia e pelo horizonte. Mesmo que visitemos outros litorais, a visão final será a de um homem só, criticada ou elogiada por seus "co-praianos". Mesmo que dez ou cem observadores descrevam seus exercícios e consigam fazer isso com alguma uniformidade, o importante é a certeza de que há um Supremo Observado. Esta experiência é individual e depende de esforço pessoal. Afirmando-se ateu, cético ou agnóstico hoje, ninguém alcançará a deus amanhã cedo. Buscá-Lo através das ciências é galgar os degraus da Torre de Babel. Como bem observou Gounelle, quanto mais aumentam as luzes da criatura, mais aumentam as sombras do Criador. O que não torna vã a busca.
André Gounelle
Isto remete-nos ao paradoxo de Aquiles e a tartaruga concebido por Zenão de Eléia. Caso Aquiles e uma tartaruga apostem corrida e esta possa correr alguns metros antes dele começar a correr, ela jamais será alcançada pelo atleta. Durante o tempo empregado por ele em vencer o espaço já completado, ela andaria mais um trecho, mínimo que seja. Como se percebe, segundo este enigma, há aproximação contínua, mas nunca definitiva. Si o homem não alcança o réptil, a seu favor há o esforço, o caminho percorrido, a liberdade de percorrê-lo, a aproximação gradativa e, sobretudo, o sentido. Coisas que não devem ser desprezadas.
O ramo Vaishnava da filosofia indiana tem por fundamentos nove verdades a respeito da realidade. A primeira diz que "Vishnu é a verdade absoluta, à qual nada nem ninguém são superiores". A sétima verdade afirma que "liberação significa atingir os és de lótus de Vishnu". Estes "pés de lótus" são a base onde a divindade apóia-se. Verifica-se também, aqui, o movimento de aproximação, mas não de alcance ou equiparação. Sem qualquer ânimo proselitista - o que contrariaria nossas convicções - , lembramos de Kardec ter registrado que o homem compreenderá o mistério da divindade "quando seu espírito não estiver mais obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, estiver próximo dele, então, ele o verá e o compreenderá". Percebemos, assim, conteúdo semelhante oriundo de fontes culturais distintas.
Em verdade, em verdade, gostaríamos de escrever sobre dois livros. Sobre o primeiro encerramos aqui com votos de boa leitura. O outro, cujas páginas ainda percorremos atentamente, é também um diálogo entre os psicanalistas franceses Françoise Dolto e Gérard Sévérin. Intitula-se Os Evangelhos à luz da psicanálise. Trata-se mais de uma entrevista conduzida pelo psicanalista mais novo, de forma a auxiliar a mais antiga a registrar seu paralelo entre os textos bíblicos - evangélicos em especial - e as descobertas freudianas. "Coisa alguma da mensagem do Cristo estava em contradição com as descobertas freudianas", afirma Dolto. "Confesso que estou em busca das fontes dessa verdade", continua. Tarefa comum.
Ricardo de Mattos
Taubaté,
6/2/2012
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