A Nouvelle Vague e Godard | Humberto Pereira da Silva | Digestivo Cultural

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Quarta-feira, 15/2/2012
A Nouvelle Vague e Godard
Humberto Pereira da Silva
+ de 6700 Acessos

Estudos, debates ou balanços sobre a produção cinematográfica internacional ocupam espaço tímido nas prateleiras das livrarias no Brasil. Grande parte das informações sobre o que ocorre no cenário mundial do cinema, assim como a relevância dos grandes diretores, suas biografias, circula de modo fragmentado; hoje em dia, principalmente pela internet: publicações sobre movimentos importantes como o Neorealismo, a Nouvelle Vague ou o Novo Cinema alemão são esparsas. Louve-se por isso a iniciativa de traduzir "A Nouvelle Vague e Godard" (Papirus Editora, 264 pág.), do francês Michel Marie, inserido na Coleção Campo Imagético.

A publicação do livro de Michel Marie - juntamente com "Cinefilia", de Antoine Baecque (Cosac&Naify, 2010) -, oferece aos leitores um amplo painel do contexto histórico, diretores, editores de revistas, personagens e o caldo de cultura que assinalam um dos momentos mais marcantes do cinema entre os anos 50 e 60 na França. É nesse período que críticos dos Cahiers du Cinéma tomam a câmara e iniciam a "nova onda" na arte de fazer cinema. "A Nouvelle Vague e Godard" ilumina, então, aspectos essenciais para se entender simultaneamente a importância do movimento e o papel de um de seus mais destacados representantes: J. L. Godard, que ao realizar "Acossado" ("A bout de souffle", 1960) exibiu aquele que para Michel Marie é o filme manifesto da Nouvelle Vague.

Antes de passar ao livro, no entanto, faço um alerta aos leitores da edição da Papirus. Trata-se da fusão de dois livros: "Comprendre Godard: travelling avant sur A bout de souffle et Les Mépris" (2006) e "La nouvelle vague: une école artistique" (2007), ambos publicados pela Armand Colin. A Papirus dividiu sua edição em duas partes, a primeira corresponde ao livro que foi publicado originalmente em seguida. Essa advertência é importante porque a fusão dos livros não foi explicitada e também porque, se do ponto de vista editorial a ordem dada aos textos se justifica, o que versa sobre Godard veio a público antes do da Nouvelle Vague. Há ainda o inconveniente de o leitor menos atento imaginar-se diante de uma única obra de Michael Marie, o que não corresponde à verdade. Isso em si não seria mau - teríamos 2 livros em 1 -, mas justamente a parte II da Papirus, dedicada a Godard, não traz a análise de "O Desprezo" ("Le Mépris", 1964). Portanto, nesse sentido, faltou à coordenação da Campo Imagético cuidado editorial no quesito de esclarecimento sobre o livro traduzido.

Feita a advertência, passemos a "A Nouvelle Vague e Godard". O que se tem inicialmente é a exposição da origem da expressão "Nouvelle Vague". Michel Marie ressalta que ela não tem origem no cinema e sim em pesquisas sociológicas sobre questões de gerações publicadas pela revista L´Express em 1957. Em seguida, numa exposição clara e contextualizada, ele mostra como a expressão foi assimilada pelos críticos dos Cahiers du Cinéma, que veem nos filmes de Claude Chabrol, "Nas garras do vício" (1957) e "Os primos" (1958), os sinais da nova onda cinematográfica, na contramão do chamado cinema francês de qualidade, objeto de crítica de François Truffaut em artigo de 1954: "Uma certa tendência do cinema francês".

Michel Marie mostra como era o cinema francês entre os anos de 1958 e 1959 e como os primeiros filmes de Chabrol, assim como "Os amantes", de Louis Malle (1959) e "Os incompreendidos" (1959), de Truffaut, expressam uma brutal ruptura com o que se fazia na época. No momento em que esses filmes surgiram, o cinema francês se movia pelos imperativos do mercado: produzidos invariavelmente com a finalidade de propiciar espetáculos para distrair e acumular lucros. No final da década, com a Nouvelle Vague, essa perspectiva mudou. Com os filmes dos jovens diretores egressos dos Cahiers du Cinéma, ocorre uma súbita mudança de função social e o cinema torna-se um meio de expressão artística, antes de produto para entretenimento. O sinal mais evidente dessa transformação se dá com o surgimento de dezenas de centenas de cineclubes, veículos de circulação desses filmes, que caracterizam a vida cultural desses anos e contribuem para impulsionar o movimento.

Mas "Nouvelle Vague e Godard" não mostra apenas a mudança de comportamento em relação ao cinema no início da V República francesa, quando os filmes da Nouvelle Vague, feitos com baixo orçamento, arejados, provocativos, antenados aos problemas sociais e individuais numa sociedade de consumo, se constituíram num fenômeno cultural. Michel Marie procura igualmente mostrar que a Nouvelle Vague foi uma corrente artística intimamente ligada a um conjunto de conceitos críticos comuns a um grupo bem coerente. De modo didático, ele exibe como Truffaut, Godard, Chabrol, Éric Rohmer e Jacques Rivette, núcleo essencial do movimento, se orientam em torno da chamada "política dos autores": só há um único autor de filmes e este é o diretor; alguns diretores são autores - Jean Renoir, Max Ophuls etc. -, mas nem todos são autores; não há obras, só há autores.

Um filme deve ser expressão da visão de mundo de um autor. O que se tem com isso é a inseparabilidade entre o que se vê e o que o diretor pensa. O que está fora de propósito é que um filme, concebido como meio de expressão artística, seja desvinculado de quem o realizou. Esse é o ponto chave que liga as duas partes do livro e leva Michel Marie a sustentar que Godard, autor de "Acossado", com esse filme projeta na tela o manifesto da Nouvelle Vague. Para ele, "Acossado" tem o mesmo peso histórico que "O encouraçado Potemkin" (1925), de Serge Eisenstein, e "Cidadão Kane" (1940), de Orson Wells.

A segunda parte do livro, então, é dedicada à "compreensão de Godard", especificamente de "Acossado". Em minúcias, Michel Marie mostra a gênese do filme, o contexto em que foi realizado, os problemas do roteiro, atribuído a Truffaut, mas que foi enormemente modificado por Godard durante as filmagens, a estrutura narrativa, as inovações técnicas, a análise rigorosa das sequências, temas, personagens e a recepção crítica. Apreende-se, então, que Godard acompanha os passos de seus colegas de geração e que a produção de "Acossado" foi possível em grande parte devido ao contexto receptivo de "Os incompreendidos" no Festival de Cannes de 1959. Ou seja, embora não tivesse em vista fazer de seu filme o veículo que manifestasse a estética da Nouvelle Vague, Godard tinha plena consciência de com ele tudo era permitido, que se podia refazer todo o cinema que fora feito como se fosse pela primeira vez.

Num nível mais ousado que seus colegas, notadamente Truffaut, Godard traduz em "Acossado" o que foi o espírito da Nouvelle Vague. Daí que, para Michel Marie, as inovações técnicas que ele trouxe situam seu filme num plano que não seria alcançado por "Os incompreendidos". Em Godard, desde a construção da psique dos personagens, a indumentária, até meros detalhes como a abertura em iris, o salto de imagem (jump cut), uso de raccord no mesmo eixo, falso raccord, confluem para que se tenha o espírito de transgressividade da época por meio de um filme. Assim, por que mais que qualquer outro exiba recursos de linguagem com o fim de trazer a "nova onda", para Michel Marie "Acossado" se revela como o verdadeiro filme manifesto da Nouvelle Vague.

Para os cinéfilos ávidos por leituras sobre o cinema francês em fins dos 50 e começo dos 60, "A Nouvelle Vague e Godard" é um livro obrigatório para se ter na estante. Trata-se de um livro que instiga ver, ou rever, um dos filmes mais cultuados da história do cinema. Com isso, perceber aspectos que, num primeiro contato com "Acossado", passam despercebidos. E, para um leitor atento ao livro e ao filme, se dar conta de deslizes da tradução. Na análise das sequências, ao comentar a 7ª, momento em que o casal Michael Poiccard (Jean-Paul Belmondo) e Patricia Franchini (Jean Seberg) está num quarto de hotel e conversa sobre relação amorosa, vida, literatura, Michel Marie faz menção às provocações verbais e gestuais do casal. Na tradução lê-se: "ele finge se estrangular para fazer Patrícia sorrir, e conta de maneira bem pessoal..." (p. 214). Quem vir o filme notará que ele não finge se estrangular e sim estrangulá-la. Mas mesmo que não se veja o filme, pode-se notar que a tradução se corrige em seguida: "ela sorri quando Michel brinca, tentando estrangulá-la" (p. 222). Trata-se da mesma cena, e aqui, depois da análise das sequências, a ênfase no narcisismo dos personagens.

Deslizes assim ocorrem e, nesse caso, possivelmente por descuido com os pronomes. Mas nessa menção nenhum pedantismo inoportuno; ela visa tão somente estimular a leitura do livro e, na sequência, confrontá-la com as imagens; ou seja, lembrar que para a apreciação do livro é inevitável ver e rever sempre o irreverente J. J. Godard. Esse, aliás, um conselho a ser exercitado constantemente quando se tem em vista filmes cujo propósito é o de levar o espectador à fruição estética.


Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 15/2/2012

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