COLUNAS
Quarta-feira,
7/3/2012
Treze Teses sobre Cinema
Humberto Pereira da Silva
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I -
Cinema é imagem em movimento. Confluem para a realização de um filme o enredo, as interpretações, a banda sonora, a iluminação, o cenário etc. Com isso, dispositivos que lhe dão suporte (como a tinta para o pintor, o mármore para o escultor, o instrumento musical para o compositor...); esses dispositivos são necessários para que um filme seja concebido, pois sem eles - ou parte deles - seria impensado. Mas na apreciação, se a importância do suporte se sobrepuser a do movimento giratório dos fotogramas e a consequente projeção por algum meio, o filme ressente-se do que lhe confere autonomia enquanto obra de arte. Um bom enredo pode se servir a um romance, um conto, uma peça, um balé, uma ópera; boas interpretações são esperadas no teatro, nos circos, na fala oratória; a utilização de filtros de cores e o ajuste de luz guardam algo das experiências de um pintor; o cinema, por sua vez, pode prescindir dessas exigências e produzir uma obra de arte: nada impede que um filme seja concebido apenas com atores amadores ou figurantes, com iluminação natural ou à luz de velas. O enquadramento, posição da câmera, seu movimento, o corte, a montagem, o "olho câmara", determinará como a imagem chegará ao espectador e lhe causará certo sentimento diante dela. Se da arte se espera reação do espectador diante de um objeto único, e isso propicia o que se pode chamar de experiência estética ante o belo ou o sublime, no cinema essa ocorre quando esses elementos são combinados naquilo que recebe o nome de linguagem cinematográfica.
II -
Olha-se um objeto, fecham-se os olhos e o olhar passa a outro objeto. Nisso algo similar ao corte cinematográfico: como os olhos que se retém num fragmento do visível - o foco visual -, a câmara abre-se, fecha-se, e volta a se abrir para a luz e, com isso, revela fragmentos da realidade, numa sucessão temporal não explicitamente demarcada. As imagens, separadas por cortes e ajustadas pela montagem, retém certo instante delimitado; o movimento dos fotogramas exibe um recorte da realidade. O sentido entre as imagens separadas por cortes é obra da imaginação, como se requer de uma obra como um romance, uma poesia, uma cantata, uma pintura etc.
III -
O cineasta é o artífice que recorta certo instante; suas intenções, sua concepção do sentido de uma obra de arte, sua maneira de expressar o mundo e a vida se revelam num enquadramento, num travelling, num faux-raccord. Tanto mais o cineasta puder se expressar com liberdade, tanto mais se revelará a beleza e o sublime em um filme. Isso porque ele, apenas ele, responderá pela unidade e singularidade que o filme, como obra de arte, expressar e, com isso, se inserir no conjunto de suas inquietações. Um filme, isoladamente, em que apenas incidentalmente se pense em quem responde pela direção, pode trazer coisas interessantes, como coisas interessantes podem ser encontradas nos espetáculos de variedades. Se, contudo, o cineasta tiver suas escolhas condicionadas por injunções externas, como as que envolvem uma agradabilidade prévia do público, seu filme pode ser visto no mesmo leque em que são apresentados os espetáculos de variedades para deleite momentâneo: nada além de mais produto para consumo no mercado das ilusões efêmeras.
IV -
No primeiro cinema instituiu-se o hábito de ver um filme como narrativa de episódio; institui-se igualmente uma ritualização própria para se ver uma história contada por meio de imagens: na sala de projeção, a percepção de que a trama seja exibida num fluxo temporal que não perturbe a compreensão e, ao mesmo tempo, cative a atenção. Como conseqüência da ritualização instituída nos primeiros filmes narrativos, o valor estético de um filme quase que identificado a uma história contada como nos folhetins do século XIX. Resulta dessa identificação entre cinema e folhetim a desatenção a uma sequência, a detalhes da paisagem, a um enquadramento fechado em parte do corpo de um personagem, ao cenário de fundo, aos figurinos, à banda sonora. Ver um filme, contudo, possibilita experiências estéticas distintas se o espectador soltar a imaginação para perceber algo mais que aquilo que encontraria num folhetim.
V -
Um livro é um livro; um filme é um filme. A descrição de um acontecimento, feita por um romancista, se presta à imaginação do leitor. Ele, na sua leitura solitária, compõe uma imagem mental do movimento dos personagens, a ambiência em que se encontram, a partir das experiências que teve. O valor estético da descrição se conforma às regras fornecidas pelas teorias literárias. O cineasta pode ser movido a filmar a descrição de uma cena fornecida por um romance; dela pode se apropriar dos motivos e conceber uma obra cinematográfica. Mas o que o escritor descreve com palavras será exibido no filme por meio de imagens que resultam de escolha pessoal do cineasta. No filme, o espectador está diante de imagens; não lhe cabe, portanto, ao contrário da literatura, formar mentalmente uma imagem. O valor estético das imagens se conforma às regras fornecidas pela linguagem cinematográfica. Comparar um filme a um romance de que se serve para adaptação é como misturar regras para medida de temperatura a regras para medida de comprimento: os instrumentos de medição não são os mesmos; com isso, entre filme e romance, uma situação cujas regras não possibilitam comparação. Um livro jamais é melhor que um filme, pois é um livro; tampouco o contrário, pois um filme é um filme.
VI -
Cinema é uma forma de expressão artística que se ressente da evolução tecnológica. De modo que sua produção se articula inequivocamente às tecnologias disponíveis e que permitem a projeção imagens. A história do cinema não se separa da dos dispositivos que tornam determinadas imagens possíveis. A impressão de realidade em uma cena hoje é diversa da de anos atrás e tornar-se-á obsoleta nos anos futuros. Nesse sentido, junto à ideia de explorar recursos tecnológicos disponíveis para conceber efeitos especiais, cabe examinar o momento em que cada recurso é utilizado junto aos sentimentos provocados no espectador. Os mesmos efeitos especiais no futuro serão percebidos de forma diferente, pois a experiência educa a perceber os objetos de maneira diferente. Uma cena filmada com recursos do momento provoca no espectador sentimentos que não teria anos atrás; da maneira similar, os sentimentos que terá anos adiante não são os mesmos de hoje. Com isso, o que se tem é que a história do uso de dispositivos tecnológicos para conceber efeitos especiais no cinema caminha paralelamente à história dos sentimentos provocados no espectador.
VII -
Na realização de um filme um condicionante do qual não se pode escapar: a grande movimentação de capital. O filme mais barato possível envolve recursos para a ambiência, escolha de locações, sedução de uma equipe para trabalhar nas filmagens por um período de tempo, distribuição etc. Em qualquer filme, portanto, interesses econômicos para que se possa ponderar sobre sua viabilidade no mercado: não é possível pensar o cinema fora dos preceitos da indústria cultural. Um escritor pode se recolher à solidão e escrever; um pintor ou um compositor igualmente, mas um cineasta, não! A realização de um filme depende de um jogo de convencimento sobre suas possibilidades. Do contrário, alguém perderá o que investir. Nisso, uma ritualização que exige discutir o cinema no âmbito do entretenimento e da sociedade de consumo. As concessões à liberdade criativa que o cineasta fizer dará a medida que separará a obra de arte do produto que ocupará meras horas de lazer do espectador. Talvez não seja possível sem controvérsia traçar a linha divisória entre arte e mercado; de qualquer modo, esse o desafio a ser assumido para quem se propuser a fazer e pensar o cinema como arte.
VIII -
Em conseqüência da trama na qual se apóia, implícita ou implicitamente todo filme (ficcional ou documental) está comprometido com valores sociais, morais, políticos, econômicos etc. Assistir a um filme sem se ater à mensagem que carrega é pressupor que símbolos de qualquer natureza sejam neutros, que slogans denotem somente o que exibem: para cada objeto, um símbolo fixo. Um exercício para quem se dispuser diante da tela durante a projeção de um filme consiste em procurar o sentido, o conteúdo ideológico que as imagens expressam: o cineasta, liminar ou subliminarmente, é um ideólogo, milita por uma causa; por isso, para não pactuar despercebidamente ideias que lhe são avessas, ou, de outro modo, não se expor como objeto manipulável, o espectador deve ter em mira o acordo ou desacordo com as mensagens que o filme expressa. Nesse exercício, portanto, o risco de se desavir com a mensagem. Com isso, muitos se afastam de filmes que elogiam determinada doutrina ou carregam slogans de que discordam. Mas um filme enquanto obra de arte se presta à contemplação desinteressada: a beleza e o sublime - senão para o próprio cineasta -, não se condicionam pelo acordo ou desacordo com uma ideologia expressa: se é ingênuo supor neutralidade das imagens, igualmente ingênuo é atribuir ou retirar valor estético em função de suas mensagens.
IX -
De qualquer filme - mesmo de um único fotograma - pode-se extrair elementos para ilustrar um tema de aula. O professor só não pode esquecer que a imagem apenas e tão somente é um elemento ilustrativo inserido conforme exigências e contexto próprios de uma aula. Ou seja, a imagem é como uma frase de efeito retórico que visa à adesão, à persuasão; portanto, esconde o que não contribui para os efeitos visados. Os vários elementos que se movem na projeção de um filme - verossimilhança, motivações ideológicas, alegorias históricas etc. - podem se chocar com o propósito da ilustração. Se o professor perder de vista seu caráter ilustrativo, que poderia ser feito por outros meios (recortes de jornal, pantomimas, anedotas etc.), as imagens se confundiriam com o rigor científico do tema. Um filme é um artefato que pode ser apreciado ou não como obra de arte; por isso, se oferece à imaginação. Suas imagens, portanto, não estão isentas de equívocos e absurdos; logo não se pode conceber um filme como um tratado de economia, de sociologia ou de psicologia: numa aula, ele pode ser um meio, mas jamais um fim em si mesmo.
X -
Como na literatura, o cinema ganha forma como obra de ficção; por conseguinte, uma cópia ilusória da realidade. Resulta com isso o equívoco de se pretender que um filme espelhe o passado com coerência, sem os chamados "erros históricos". Num filme, toda objetividade da narrativa histórica deve ser posta em suspenso: o cineasta, ao conceber uma obra de ficção, não tem compromisso com a "verdade histórica" dos historiadores. Nesse sentido, todo "filme histórico" é uma construção subjetiva do cineasta; ele pode, mas não precisa, se apoiar em fontes documentais. A se observar que muitas vezes isso seria impossível: quisesse conceber uma casa egípcia, não teria fontes. No entanto, seria absurdo projetar um filme sobre os egípcios no espaço vazio: uma casa egípcia no cinema não é senão uma construção ficcional. Num "filme histórico" se vê o resgate de resíduos iconográficos, fragmentos de memórias, crônicas, relatos de viagem, filtrados pela imaginação do cineasta: nenhum "filme histórico" ensina história, embora possa estimular sua aprendizagem aos desejosos de conhecê-la.
XI -
A imagem cinematográfica retém um fragmento da realidade. Passado certo intervalo de tempo, a imagem retida pode servir a preocupações teóricas de historiadores, etnólogos, antropólogos, culturalistas etc. Certos hábitos, costumes, arquitetura, expressões faciais, mobília, aparelhos eletrodomésticos estão retidos nos fotogramas; o que diferencia a imagem cinematográfica da imagem fotográfica é o dispositivo técnico que coloca os fotogramas em movimento (24 quadros por segundo) e deixam a impressão de que os fotogramas captam a realidade como seria percebida no movimento contínuo, a partir do momento em que a luz se abre para a câmara. Num sentido subliminar, o instante retido, se for de um filme cujo propósito seja de uma narrativa histórica ou de ficção científica, revela menos do passado e do futuro presumível do que sobre o momento em que foi concebido. Em qualquer filme que se pense, apenas e tão somente o "espírito de época" no qual foi realizado.
XII -
No teatro a ação dos personagens desperta sentimentos de pânico, terror, identificação. Por meio da recordação de que a ação se trata de ficção e não da realidade, o espectador sofre aquilo que os gregos denominavam como catarsis. O cinema igualmente desperta paixões e, consequentemente, o efeito catártico. A diferença entre teatro e cinema não está nos efeitos provocados e sim no fato de que o sangue, numa cena em que um corpo é lacerado, pode ter um enquadramento que acentue a impressão de realidade, o que não ocorreria no teatro, com o espectador em sua posição fixa, sempre à mesma distância da cena. A linguagem cinematográfica, com os recursos técnicos de que um cineasta dispõe, possibilita um espelhamento da realidade diferente do que se encontra no teatro. Resulta com isso um paroxismo: uma imagem de laceração na tela pode ser para o espectador mais impactante que numa peça teatral. O cinema é dotado de uma visceralidade impossível no teatro. Nesse paragone, contudo, não se visa à superioridade do cinema ou do teatro, apenas notar que o efeito catártico pode ser obtido de formas artísticas distintas.
XIII -
O estudo do comportamento coletivo cabe à antropologia, à sociologia ou à psicologia. Para especialistas, essas ciências explicam diversos comportamentos culturais, sociais e psicológicos pela influência de ações modeladas por personagens no cinema. A eventual influência negativa de um filme pode, então, gerar sua interdição, a fim de que se preserve a ordem social. Nesse caso, não cabe falar em cinema e sim em condicionantes jurídicos, políticos, ideológicos, propagandísticos ou moralistas. Uma vez que se defenda ao Estado garantir a liberdade de expressão, também a ele deve-se atribuir a garantia da segurança pública. Entretanto, no ato de criação o cineasta pode se afastar do que lhe é ditado pelo Estado ou pela sociedade. Ao realizar uma obra transgressiva, o risco de que seja banida. Disse segue-se uma constatação inequívoca: queira o estatuto de arte ao filme que realiza, o cineasta se movimentará numa fronteira tênue, numa área de atritos constantes.
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
7/3/2012
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