COLUNAS
Sexta-feira,
2/3/2012
Tom e Tim
Marta Barcellos
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Nunca fui oficialmente jornalista cultural, mas tive meus momentos. No finalzinho dos anos 1990, quando eu era repórter do Globo-Ipanema, surgiu uma oportunidade daquelas: Tom Jobim faria um show único, em um espaço privilegiado que não costumava abrigar espetáculos. Era o Jockey Club, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. O maestro já estava consagrado, não andava se apresentando no Brasil nem dando entrevistas, e morreria poucos anos depois, em 1994. Como foca que eu era, teria poucas chances de entrevistá-lo, mas acabei pegando carona em um acordo entre o jornal e sua assessoria de imprensa: antes da coletiva sobre o show, nas dependências do Jockey, Tom receberia o repórter do segundo caderno em sua casa. Eu iria junto, com a condição de não atrapalhar.
Com o carro do jornal, demoramos para encontrar a casa, uma construção nova e deslumbrante incrustada na mata atlântica no fim do bairro do Jardim Botânico. Sentamos nos sofás da sala, onde o maestro nos recebeu, e me posicionei discretamente, para não atrapalhar o fotógrafo e o repórter titular - a quem cabia as perguntas. Os jornais do dia seguinte estariam repletos de matérias sobre Tom, e a minha missão de conseguir um ângulo exclusivo era facilitada apenas pelo peculiar interesse dos jornais de bairro em histórias "de moradores", mesmo que fossem celebridades.
O papo sobre música, Brasil, Nova York, parecia render, mas eu pouco prestava a atenção. Nervosa e excluída, restava-me observar o ambiente. O tempo estava cronometrado, já que a coletiva aconteceria em sequência, e quando a entrevista dava mostras de se encerrar eu tentei, timidamente, fazer perguntas para o "morador" Tom. Ele gostou. Pareceu mais interessado do que na conversa anterior. Estava orgulhoso da casa nova, levantou-se e mostrou a encosta que ficava atrás, falando das espécies que habitavam ali, pássaros, macacos. Eu perguntei da infância em Ipanema, e aí ele abriu um sorriso cheio de nostalgia. Ipanema tinha dunas, ele nadava na Lagoa Rodrigo de Freitas (bastante poluída na época da entrevista), chegou a catar pedras semi-preciosas quando era criança em suas margens. Pedras semi-preciosas? Devo ter feito cara de espanto. Ainda hoje, teria duvidado.
Os meus minutos esgotavam-se, e a comitiva precisava rumar ao Jockey Club. Nosso carro iria atrás do dele. É provável que os jornalistas que esperavam no local tenham desconfiado da entrevista exclusiva quando a equipe do jornal chegou junto com Tom. Houve um certo clima, alguns repórteres tentaram se aproximar, mas os assessores pediram que todos se sentassem nas cadeiras previamente enfileiradas no salão. Estávamos acima das arquibancadas do Jockey, de frente para a Lagoa.
Quando se deparou com a paisagem, no entanto, o maestro ignorou a tentativa de ordem e pareceu procurar alguém entre os repórteres. Era eu. Pescou-me com um abraço para mostrar o local onde ele tinha achado, em certa ocasião, as tais pedrinhas semi-preciosas. Eu não sabia se anotava, se voltava a entrevistá-lo ou se pedia sua ajuda para enfrentar os "colegas" que me fuzilavam com os olhos. Era muita audácia para uma repórter novata, aquela situação.
Mas Tom era menos estrela do que contador de histórias boa-praça, como eu teria oportunidade de confirmar depois - não em novas "exclusivas", já que meus caminhos jornalísticos seriam outros, mas em documentários e entrevistas na TV. Acessíveis ou não, são assim também Ferreira Gullar, Ariano Suassuna, Chico Buarque. Que delícia assisti-los nos documentários que passaram a ser produzidos no Brasil nos últimos anos.
Por isso, quando fui ver A música segundo Tom Jobim saí um tanto decepcionada. A crítica especializada me explicou depois que o filme é ótimo, e que Nelson Pereira dos Santos empreendeu uma inovação no formato tradicional de documentário ao desenvolver o conceito de que a linguagem musical fala por ela própria no caso de Tom Jobim. Quem sou eu para discordar de tamanha revolução, e revelar meu conservadorismo de ter sentido falta até das legendas para identificar quem era quem (como a ficha técnica das músicas só aparece no final, passamos boa parte do filme tentando lembrar o nome dos intérpretes menos conhecidos).
Então o filme é ótimo porque as músicas são mesmo ótimas e seguem uma sequência ótima, também. Mas, talvez influenciada pela doce recordação de repórter foca, para mim faltaram as histórias. Sim, elas. As histórias, sempre elas. A paixão de Tom pela natureza (muito antes de isso ser moda), a relação com os parceiros, como surgiram algumas composições. Tudo aquilo que eu gostaria de ter podido perguntar numa tarde preguiçosa na casa de Tom, se tivesse tido realmente o privilégio de sua convivência.
O curioso é que, enquanto as suaves histórias de vida por trás da obra de Tom Jobim foram suprimidas em seu documentário, em outro sucesso de público as apimentadas histórias de um ídolo estão todas lá. Como expliquei no começo, não tive muitos momentos como repórter de cultura, mas na mesma época em que fui abraçada por Tom (perdoem o pequeno exagero) quase fui escorraçada por Tim Maia - o biografado de Nelson Mota em Vale tudo, transformado em musical recordista de bilheteria no Rio, com estreia paulista em março.
A matéria, dessa vez, era para o Globo-Tijuca, bairro onde Tim cresceu e formou seu primeiro conjunto musical, ao lado de Roberto Carlos. Mas a entrevista fora marcada em um flat na Barra, num local bem diferente da charmosa casa de Tom. Embora de frente para a praia, na Avenida Sernambetiba, o prédio era um caixote repleto de pequenos apartamentos - incluindo aquele onde o cantor costumava passar fins de semana e onde fui recebida por uma loura. Com o gravador emprestado em punho (não era hábito usá-los, mas eu havia sido alertada sobre a mania do artista de processar jornalistas), consegui extrair algumas das histórias antigas, numa entrevista relativamente tensa. Até que Tim resolveu cismar com o meu gravador. Disse que ia ficar com a fita. Não havia um diálogo possível, e lembro de ter praticamente fugido do local com o gravador, numa despedida antecipada pela mudança de humor do artista.
Tratando-se do intempestivo Tim Maia, não chega a ser uma grande história. De qualquer forma, ela acompanha a minha trilha sonora pessoal. Entre um "Azul da cor do mar" e um "Passarim", posso contar que conheci a doçura de um e o temperamento do outro. Viva Tim e viva Tom Jobim!
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
2/3/2012
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