COLUNAS
Quinta-feira,
21/3/2013
Entrevista com Luiz Felipe Pondé
Humberto Pereira da Silva
+ de 5800 Acessos
O mundo atual, com suas contradições, impasses, forte presença dos meios de comunicação, suscita os mais variados debates e discussões a respeito do que se deve fazer para ter uma vida boa ou, de outra forma, tornar o mundo melhor. Em decorrência, intelectuais e cronistas culturais ocupam espaços e expõem suas opiniões. O que muitas vezes significa se colocar no olho do furacão, correr riscos, se expor a polêmicas. É o que tem feito nos últimos anos o filósofo Luiz Felipe Pondé, como se pode ler nos ensaios reunidos no livro "Contra um mundo melhor" (Leya, 215 pág.).
Dono de um estilo afinado e cortante, que se revela por meio de frases que perturbam tanto quanto quebram expectativas de "correção política", Pondé trata temas polêmicos e desconforta quem se move impulsionado por clichês morais aconchegantes sobre o mundo em que vive. No veio que inclui polemistas de perfis contrastantes, como o austríaco Karl Kraus, no ocaso do império austro-húngaro, o americano recentemente morto Christopher Hitchens, ou o brasileiro Paulo Francis, Pondé não escreve, nem emite opiniões, para gerar consenso.
Com uma formação acadêmica rígida, suas opiniões são marcadas pela influência da filosofia cética e da religião trágica grega. Entre os pensadores que mais o orientam, destacam-se o francês Blaise Pascal, o alemão Friedrich Nietzsche e o romeno Émil Cioran. Com isso, cabe realçar como fruto de seu trabalho acadêmico os seguintes livros: "Do pensamento no deserto", "Conhecimento na desgraça: Ensaios de Epistemologia Pascalina", "O homem insuficiente", todos publicados pela Edusp, "Crítica e profecia, Filosofia da Religião em Dostoievsky", pela Editora 34. Atualmente é professor de Ciências da Religião, na PUC-SP, e de Filosofia, na FAAP.
Na entrevista a seguir, Pondé destila opiniões sobre assuntos que, como pontua, expressam o sentimento de muitos que têm medo de se expor: "o colunismo no jornalismo brasileiro ficou reduzido a nada, depois da morte de Paulo Francis, porque todo mundo tem medo do leitor; todo mundo tem medo do que vão pensar"
1. "Contra um mundo melhor" traz como epígrafe sentença do filósofo romeno Émil Cioran. Nela a afirmação da inútil constatação de que com sessenta anos de idade ele sabia o mesmo que aos vinte; você tomaria para si a afirmação de Cioran?
Luiz Felipe Pondé - Quando tinha vinte anos eu estudava medicina. Na faculdade a gente enfrentou uma greve de alunos. Eu estava no terceiro ano e o líder da greve era um péssimo aluno, que estava há muito tempo na faculdade e não gostava de assistir aula. O que ele queria era atrapalhar o cotidiano. Era um cara bastante autoritário e manipulador.
Ainda que não tivesse um aparato filosófico, eu percebia hipocrisias assim naquela época. Hoje, cada vez que o tempo passa, sou mais filósofo, mas encontro o estudante de medicina. A visão de mundo médica - e eu não falo isso no sentido de que eu queria ter continuado na medicina - para mim é um diferencial nas ciências humanas.
As ciências humanas muitas vezes tende ao delírio, a não tem objeto. O cara faz um doutorado e acha que isso implica um dos ganhos que ele traz sobre o ser humano. Nesse sentido, eu já era meio assim. Portanto, se ratifica a frase do Cioran.
Agora, a frase do Cioran quer dizer que com o passar do tempo, quando você analisa a história em grandes espaços de tempo, as coisas não mudam muito. E eu acho que é um vício nosso achar que o mundo começou com a queda da Bastilha, que a única política que existe é definida a partir da visão de direita e esquerda. Cada vez mais penso nas coisas em grandes blocos de tempo. Nesse macrossentido, minha impressão é que a humanidade continua se movendo a partir da necessidade de sobrevivência, inveja, orgulho, mentira, com alguns dotes de generosidade aqui e ali, portanto, não muda.
2. O título do livro parte da ideia de que "o mundo mente sobre si mesmo" Você já tinha, então, a percepção de contrariedade quanto a um mundo melhor?
Pondé - "Contra o mundo melhor" é um título contra a tirania da perfeição, a hipocrisia do bem em que a gente vive. O puritanismo cristão dominou por muito tempo a cultura ocidental. A partir, grosso modo, de Rousseau e a revolução francesa o puritanismo mudou e virou um puritanismo cuja manifestação mais brega e irritante é a história do politicamente correto.
Então, não é um título que diz: o mundo vai ser sempre a mesma porcaria; mas é - às vezes uma coisa melhor aqui outra lá - que eu não confio em pessoas que se dizem a favor de num mundo melhor. No sentido específico político de nossa época, pessoas que se apresentam no dia a dia do meu convívio, inclusive profissional, e estão identificadas com o discurso oficial de melhorar o mundo normalmente são canalhas. Como sempre foi a relação entre puritanismo e vida real.
3. Você se apresenta como cético: "não acredito em nenhum sistema de valor disponível". Para os céticos antigos, como Pirro, isso é possível pela ataraxia, pela epoché. Mas, você não se afasta do ceticismo, quando trata de temas pontuais como comportamento? Para um cético, temas assim não gerariam discussão, ele apenas suspenderia o juízo.
Pondé - Eu não tenho - nem acho possível na época em que vivemos - nenhuma intenção de buscar a ataraxia, a apatheia, a epoché, no sentido em que se vivia 400 anos antes de Cristo, numa Grécia onde não havia capitalismo, indústria, ciência. O cético grego está mais perto, como imagem, de um cara meio zen budista, que chega à conclusão de que na realidade o mundo é um nada, que tudo é meio efêmero. Portanto, você não deve sofrer, nem ficar ansioso, nem angustiado com o condomínio que tem que pagar amanhã.
O cético grego está muito perto de uma posição que é: ele não adere a um sistema de valor, mas quando ele está em Roma é como os romanos. Os hábitos são relativos, as nossas percepções são relativas e não há outro fundamento senão nos costumes a que estamos submetidos.
Isso do ponto de vista da Grécia. Sobre a minha formação, eu me vejo como cético, mas também muito influenciado pela religião trágica grega. Então a rigor eu não sou, para usar uma terminologia técnica, um cético puro e nem pretendo ser. Eu não acho que exista hoje um cético puro, pelo contrário, a palavra ceticismo é muito mais usada no sentido de alguém que briga com a religião. Brigar com a religião para um cético é como bater em bêbado na ladeira, chutar cachorro morto. O cético mesmo é aquele que põe em dúvida a razão. Nesse sentido, eu sou bastante cético, ao por em dúvida a razão, inclusive nas suas formulações de engenharia política, de engenharia moral.
Uma coisa que espanta muita gente é que o ceticismo na realidade tende a uma posição política conservadora. Como eu não confio na engenharia política, no sentido de "melhorismo", eu tenho uma tendência a ser mais cuidadoso no descarte de hábitos. Não porque isso tenha fundamento universal, simplesmente por conta de um contra, intrínseco com relação à capacidade humana de ajuizar, avaliar e prever. Não prever que se você andar com carro com pneu furado ele não vai conseguir andar. Isso é uma coisa meio banal.
Agora, se eu não abandono o ceticismo de alguma forma? Eu acho que a prática sistemática do ceticismo causa um tipo de alteração na sua disponibilidade cognitiva.
4. Você não busca a epoché, mas como cético se submete aos valores disponíveis - em Roma, como os romanos - e, também, coloca em dúvida a noção de valor?
Pondé - Você fala de valores morais disponíveis, mas eu sempre discuto - aqui na Comunicação (FAAP), quando eu ensino ética, e também na PUC - em termos de virtude. A ideia de valor é uma ideia que basicamente surge no século XIX e XX. Foi Nietzsche que colocou essa expressão tipo: ora, os valores são relativos e que valor mesmo é o valor da força, que fala de adesão à vida pautada por um Eros que aceita qual o sentido da vida. Eu prefiro sempre pensar moral e ética nesse horizonte da virtude x vicio.
Com relação a valores, o valor é o que ele é. Você fica impregnado por um valor de um jeito que não sabe explicar, assim como a língua materna o impregna. Eu acho que valor é uma das coisas mais legais para criticar a baboseira contemporânea: eu tenho meus valores! Os valores dos meus filhos!
Quem tem filho sabe o que tentou passar para ele. Antes dele se tornar adulto, ele aprende, pensa e entra em choque com o que você fez. Por isso, eu sempre tenho a impressão de que quem não tem filhos fica infantil em uma dimensão da vida. É mais fácil ser utópico. Quem tem filhos reais e concretos, consegue quebrar qualquer utopia grandiosa que você tenha sobre sua capacidade de formar as pessoas.
Eu sou mais do tipo que crê que o que determina a pessoa, para além dos fatos contingentes - nesse sentido eu sou completamente ortodoxo em termos de medicina grega - é o temperamento. Eu acho que o temperamento determina muito na vida de uma pessoa. E a gente não sabe bem porque os temperamentos são assim ou não são. No sentido de que o temperamento torna você disponível para isso ou aquilo, torna você capaz de enfrentar isso ou aquilo, e com isso não é nada mais que contingência de novo. Só que é outro tipo de contingência.
Com relação a aceitar os valores que estão disponíveis aí no mundo, eu acho que nesse sentido eu acabo sendo cético de novo. Eu vivo mais ou menos de acordo com os valores que a sociedade apresenta.
5. No livro há um ensaio que trata especificamente da questão do dinheiro. Você desconfia que aqueles que negam sua contribuição para a própria felicidade assim o fazem porque não dispõem dele. Por que, para um cético, a felicidade depende de dinheiro?
Pondé - Dinheiro é só um exemplo pontual do que eu dizia antes. Todo mundo corre atrás de dinheiro. Porque sem dinheiro, no registro em que a gente vive, não existe vida. Dinheiro é abundância, dinheiro inclusive gera outras formas mais sublimes de vida. Isso não significa que dinheiro não corrompa. Mas corrompe porque as pessoas gostam de dinheiro; gostam porque precisam viver com ele. Por exemplo, é muito fácil alguém se dizer humilde quando é pobre, porque quando se é pobre ser humilde é falta de opção. Ser humilde quando se é rico é quando se faz opção. Por isso, no sentido teológico, é tão glorificada a humildade de Cristo.
6. Achei particularmente perturbador seu ensaio sobre "medos masculinos e mulheres obsoletas", principalmente pela maneira como entende e define a chamada "emancipação feminina" na sociedade contemporânea. Devo entender esse ensaio como um manual de guerrilha num mundo de inequívoca "emancipação feminina"?
Pondé - Eu começaria a responder sua pergunta com o seguinte: espanta como nessa questão, que eu tenho levado na Folha (jornal Folha de S. Paulo), há um contingente gigantesco de mulheres que são minhas fãs. Mandam e-mails, me abordam nos lugares, revistas femininas me solicitam para entrevistas, enfim me adoram.
O que me leva a dizer o seguinte: trata-se de um ensaio; é um ensaio de guerrilha. Mas, para grande parte das mulheres, o que eu falo não é no sentido de uma guerra contra as mulheres. O que há na realidade é o estabelecimento de um canal de comunicação com elas a partir da condição masculina heterossexual. Uma comunicação que não tem medo de falar com as mulheres.
Os homens hoje tendem à covardia, à inação, ao medo, e a ficar repetindo blábláblá da emancipação feminina. No sentido de que você tem direito a isso, você tem direito àquilo, quando eu acho que a relação entre homem e mulher é muito mais complicada do que um acordo na cama em que a gente diz: olha, meu amor, eu vou três cm e você vem três cm. Assim os dois estão fazendo uma relação em condições iguais. Eu acho isso muito idiota, eu acho isso falso.
Assim como tem mulheres que me odeiam. Normalmente as que são contaminadas por certo feminismo ideológico. E eu separo do ponto de vista ideológico, porque não tenho dúvida de que deve ter delegacia da mulher, tem mulher que é espancada. Não discuto que elas devem ter salários e direitos iguais. Eu discuto quando o debate chega num ponto em que se quer desconstruir a identidade masculina e a feminina para dizer que tudo o que o homem fala é machismo. Escutar isso me dá sono.
Na realidade todo mundo sabe que existe um sofrimento feminino relacionado ao ganho dessa situação feminina, que tem a ver com a experiência de solidão, de desencontro, de tédio. Isso não significa voltar ao que era antes. A oposição entre conservador e progressista cada vez me interessa menos.
Primeiro, porque a palavra conservador serve simplesmente para dizer que o cara é reacionário e chato. É uma ideia que para mim não significa nada. E a posição progressista também não me interessa pelos argumentos que a crítica conservadora faz a ela. De que ela fica bem no debate, de que as pessoas envolvidas com a posição progressista não levam em contas as características do comportamento humano que não são de ordem política.
Então ele é e não é um manual de guerrilha. É um manual no sentido de que serve para dizer: olha, os homens têm medo disso.
7. Mas por que mulheres obsoletas?
Pondé - Para alguns homens, algumas mulheres são obsoletas. Por que obsoletas? Obsoletas no sentido de que para muitos homens não há mais por que investir nas mulheres. Elas são financeiramente independentes. Apesar de que, na dinâmica do casal, a mulher sempre acha que, se ela tem que sustentar o marido, é um mau caminho. Ela sustenta durante algum tempo se for necessário. Não é que não exista uma franja de tolerância, mas é uma franja de tolerância!
Ou seja, é uma situação onde dividir tudo bem, o ideal é que nem tivesse que dividir. Para a mulher, trabalhar ainda é opção; ela pode resolver não trabalhar, enquanto o homem não tem opção: ou ele trabalha, e é bem sucedido, ou é um fracassado.
Os jogos nessa discussão, tal como certo feminismo ideológico se coloca, são falsos. O feminismo ideológico evita a discussão. Grande parte das mulheres sabe disso, por isso gostam do que eu escrevo.
8. Num primeiro momento, a impressão é que o texto é voltado diretamente para as feministas...
Pondé - É claro! Eu ataco as feministas.
9. Mas seus textos alcançam um público amplo, suas posições geram controvérsias e muitos são insensíveis a esses esclarecimentos. Como você vê a reação dos que discordam, ou não percebem o alvo de suas discussões? Por exemplo, você escreveu sobre "churrasco na laje", numa referência que para muitos é preconceituosa em relação à classe C... quer dizer, há incompreensões...
Pondé - No fundo, isso é uma discussão que a gente tem feito no âmbito profissional. Na Folha essa discussão aparece, na TV Cultura também, que é o seguinte: quem aparece na mídia hoje tem que ser escravo do receptor, ou seja, do leitor, do telespectador, enfim, do marketing. Mas na realidade eu não estou absolutamente nem um pouco preocupado. Essa é uma das características que faz com que eu faça o que faço: eu não estou nenhum pouco preocupado se alguém pensa mal de mim com o que eu escrevo.
Eu digo isso no seguinte sentido: o colunismo no jornalismo brasileiro ficou reduzido a nada, depois da morte de Paulo Francis, porque todo mundo tem medo do leitor; todo mundo tem medo do que vão pensar. As pessoas me perguntam: você já foi processado? Eu nunca fui processado. Eu sei muito bem o tipo de palavra, ou termo preciso, que inclusive remete a pessoas, que pode levar a processos canalhas que têm por aí: fazer assédio moral para calar alguém que está falando alguma coisa, simplesmente porque discorda de você.
A questão do "churrasco na laje", por exemplo, a primeira vez que usei essa expressão eu estava num avião. O avião estava cheio de gente mal educada, grossa, que ficava batendo foto de si mesma enquanto comia. E o que esse texto descreve é o sentimento que muita gente tem, mas tem medo de falar. Eu não estou preocupado com o que a classe C, ou a classe média, vai pensar do que eu escrevo. No sentido de que vai achar que estou sendo preconceituoso.
Todo mundo tem preconceito. Mas quando lido com pessoas da classe C - e inclusive em publicidade eu dou muita consultoria sobre a classe C - eu não tenho nenhum problema de convívio. Nisso muitos debates políticos são canalhas. No sentido de querer dizer que, porque eu coloco isso em debate, significa que trato mal pessoas da classe C, porque eu não convivo com elas. E mais: ter preconceito com a classe C seria supor que um dia ela não vai aprender a se comportar em aviões, e isso eu não suponho. O que faço hoje é uma constatação.
Os aeroportos são - eu disse isso outro dia no Jornal da Cultura - uma porta do inferno. Não tem saída. Nessa época, inclusive, é uma porta do inferno. E isso é uma contradição do capitalismo. Ele tem que crescer e vender.
Eu conheço um pouco a indústria do turismo: ela tem que crescer e vender, mas para crescer e vender tem que se massificar. Se isso ocorrer, você tem que acabar com o Louvre (Museu). Porque todo mundo vai lá, tira foto da Mona Lisa com o dedo apontado, pisa no seu pé e você não enxerga nada.
Não adianta querer dizer: isso é preconceito! Não, isso não é preconceito, isso é insuportável. Mas não tem saída, porque o capitalismo precisa disso. E eu vou dizer que uma pessoa de classe C não tem condição de ir a Paris? Cioran nos diários dele - uma vez ele foi passar férias de verão na Normandia - faz essa observação em vários momentos: houve uma invasão de bárbaros e agora você não consegue mais viajar.
10. Há também controvérsias, ou incompreensões, nos meios acadêmicos, com ataques com base no que escreve. Por exemplo, desconfiança a respeito de leituras que você faz de autores como Foucault...
Pondé - Eu sou um acadêmico. Fiz todos os testes e momentos da formação acadêmica. Esse é um dos problemas: o bando da esquerda no Brasil, que forma na realidade a maioria esmagadora do universo intelectual - seja nas redações de jornais, seja na academia - não dá, sonega informação aos alunos. A ponto de, inclusive, não oferecer bibliografia. Um exemplo banal: nós somos completamente ignorantes em iluminismo inglês. Passei pela USP e não estudei iluminismo inglês. Estudei David Hume como cético, mas nunca como critico do racionalismo político da época dele, que ele assimilava ao fanatismo calvinista.
Discussão a fundo sobre Stuart Mill, Jeremy Bentham, David Hume, Edmund Burke, uma discussão que mostra como a experiência do iluminismo no Reno Unido foi muito diferente da obsessão racionalista francesa? A gente não tem essa formação. Na USP! Nos quatro anos que passei lá, nada! Na Ciência Política, no mestrado, eu tive aula com a Tereza Sadek e ela me apresentou Tocqueville. Como você pode discutir democracia sem Tocqueville? Mas Tocqueville não foi lido durante muito tempo. Por quê? Ah, é conservador!
Então muitos colegas ficam bravos comigo porque eu fui formado como eles e eu gosto de ler. Eu saí da medicina porque eu gostava de ler e pensava nessas coisas. Na realidade, a maior parte do nosso mundo - gente que está no nosso mundo - não gosta de ler, não lê e passa a vida inteira lendo três livros. Não é fácil virar para mim e dizer que eu não sei o que estou falando, porque eu sei o que estou falando. Eu estudei.
Quando eu discuto Foucault, o exemplo que você deu, discuto porque li, e mais li seus críticos. Eu sou capaz de fazer discernimento aqui, entender ali, porque eu gosto de ler, ou seja, temperamento. Quando a pessoa fala que eu não entendo nada disso ou daquilo outro, é porque na realidade eu feri o gostinho afetivo que ela tem sobre aquele autor.
Agora, a forma de querer me tirar do debate é dizer que eu não entendo de Foucault. Por exemplo, uma das coisas que eu gosto em Foucault é quando ele diz, na "História da sexualidade", que inventaram a coisa da sexualidade: eu acredito que quando eu falo dela eu me conheço. Critico o Foucault guru da esquerda chique do campus das universidades, gente covarde.
Tem ainda esse problema: quando você discute uma coisa, o autor é tomado como totem. Na PUC, eu tive problema no Departamento de Filosofia com um colega por causa de Foucault: nós somos foucaultianos! Eu sou palmeirense e vivo bem com corintiano; isso é futebol. Eu não sou coisa nenhuma.
Para mim é importante Pascal, é importante Cioran, os céticos, Nietzsche é importante, mas eu li Marx. Como é que eu vou dizer que a ideia de mercadoria é errada? Que a mercadoria permeia as relações? Eu não tenho nenhum problema em reconhecer isso. Talvez os meus traumas estejam alocados em outro lugar. Então, eu não preciso pegar Foucault como bandeira para dizer que ele salvou minha vida.
11. Um tema que não transita com tanta freqüência em "Contra um mundo melhor" e que me chama a atenção é o da humildade. Pascal fala de nossa imensa ignorância perante a vida e o universo. Ao evocar Pascal, você sustenta que sem humildade não há conhecimento possível e que em nós, modernos, falta humildade. Daí, na oposição com os antigos, preferi-los à "breguice moderna". Por que nos falta humildade diante da inexorabilidade dos espaços infinitos de escuridão?
Pondé - Quando Pascal fala isso o que ele está dizendo é que a ciência moderna acaba nos revelando que o universo nada mais é que espaços infinitos de solidão. Nesse sentido, ele representa o que a modernidade tem de bipolar. Ela tem seu momento de mania, que é o momento cartesiano, não desse cartesianismo que se acredita: abraçar a árvore é uma forma de conhecimento anticartesiano. Não é isso que estou falando. Quando eu digo: Descartes é um momento maníaco, é no sentido que vai de Bacon a Galileu.
Bacon é o momento mais maníaco na raiz da ciência. Nele a ideia de que a ciência de fato vai nos proporcionar uma nova Atlântida, onde nós vamos ter de fato uma vida melhor, de bem estar e tudo mais. Pascal representa o momento sombrio da modernização. Ele já é um ancestral do existencialismo. Num processo que vai dar em Kierkegaard, em Heidegger, no primeiro Sartre, antes dele virar adorador do Mao Tse- tung.
Pascal representa, então, o momento depressivo da modernização. Um momento de perceber o moderno como uma espécie de órfão cósmico, a partir de uma ruína do sistema medieval. Sistema esse que tendia à inércia social, que não foi pautado por grandes descobertas e invenções, que tinha uma filosofia altamente metafísica, numa escala de seres invisíveis. As coisas eram ordenadas de alguma forma com a ideia de que havia a assinatura de Deus no universo. Você via na natureza uma intencionalidade divina se manifestando na ordem dos seres e na nossa vida.
Quando Pascal olha esses espaços infinitos de solidão, ele diz que acabou essa visão do mundo. O espaço, no sentido de universo, é um lugar vazio, onde a gente não encontra mais nenhum ordenamento científico. É nesse sentido que eu cito Pascal no livro, ou seja, como mais uma das formulações do trágico. Uma das formulações que o trágico assume na história da filosofia.
12. Mas, onde a ausência de humildade aparece? Não é possível efetivamente sermos humildes? Arrogantes, não desvendamos a escuridão dos espaços de que nos falava Pascal?
Pondé - Eu acho que é tão possível que aparece em Pascal, é tão possível que aparece em textos como de Zygmunt Bauman, é tão possível que aparece na obra do Kafka. Então ela é possível como forma de pensamento. Eu acho que a não humildade aparece, por exemplo, quando alguém diz para você que na realidade a nossa relação com o universo é construída ideologicamente, culturalmente, ou quando alguém vira para você é diz: o mal é uma construção social. O mal é uma construção social, nada!
A experiência do mal é uma coisa concreta. Eu posso não saber dizer o que ele é, eu posso nem acreditar que existe o demônio (acreditar como figura de fato), eu não preciso nem definir o que é substância, mas quando você pega esses antropólogos que dão uma risadinha (risos) e dizem que o mal é uma construção social, dá vontade de rir do lado de cá. Porque a gente tropeça nele com mais freqüência do que com o bem; o bem é o milagre.
Outro exemplo de ausência de humildade no pensamento é no assunto que a gente discutia antes: a sexualidade é construída socialmente. Não é! É claro que existem condicionantes históricos, sociais, comportamento masculino, feminino; mas querer dizer que a gente pode fabricar um homem e uma mulher socialmente. Põe o cara num asilo de loucos.
A teoria de gênero hard, que nega a díade macho e fêmea, é puro delírio, pura arrogância.
13. Uma das dimensões disso se encontra no discurso politicamente correto...
Pondé - Claro! Ao invés de as feministas enfrentarem isso, inventam uma teoria bonitinha para dizer que o problema não é delas. É da igreja, do patriarcado, do avô, da mãe, da professora na escola. Eu acho que isso trava a gente para cacete. Atrapalha nossa vida, dificulta o próprio ensino, a relação com os alunos.
Quer ver outra coisa? Essa palhaçada de dizer que jovem é tudo. Jovem é isso, jovem é aquilo. Jovem não sabe nada, nunca soube nem vai saber. A gente mal sabe. Quanto mais um menino ou uma menina de dezesseis ou dezessete anos. Ai ele vê você querendo ser ele, querendo ter disposição para vida como ele, querendo viver como ele vive e vai te achar ridículo.
Não há nada mais ridículo que professor que quer virar amigo de aluno no facebook. Essa é uma tentativa de reverter o processo, porque é insuportável ser narrador da vida, como é a condição do adulto. Dizer que talvez isso não faça sentido, mas não tem como escapar, tem que enfrentar, sem muita certeza. É difícil. É mais fácil virar para a filha e dizer: quero aprender com você, sou moderninho, sou para frente...
14. Extraio uma afirmação sua: "a vida é um conto narrado por um idiota significando nada", adaptada de "Macbeth", de Shakespeare. Na peça, diante da infortuna Macbeth lembra não ter compreendido o destino que lhe fora revelado pelas feiticeiras. Para você o destino é posto em nossa frente e não o deciframos, ou nos enganamos na crença de que o que vemos seja falso?
Pondé - Isso é o básico da estrutura do destino trágico. Na mitologia grega antiga, o destino era previsto pelas moiras e elas são facilmente assimiláveis a figuras como fúrias, feiticeiras. "Macbeth" faz parte do pacote das quatro grandes tragédias de Shakespeare ("Hamlet", "Otelo", "Rei Lear" e "Macbeth") e talvez seja a maior de todas, no sentido de ser claramente trágica (Hamlet é o maior personagem). Nessas peças Shakespeare elaborou de forma mais clara sua visão trágica do mundo.
A ideia de que o destino já está dado a priori é uma idéia trágica para os gregos, pois você realiza o destino traçado: passa a vida inteira achando que escapa de uma coisa, mas acaba realizando aquilo de que escapa.
Mas ao mesmo tempo, uma das experiências melhores que alguém pode ter da vida é a sensação de que teve algum espaço de escolha. Eu não acho que a vida é inteiramente dada, no sentido de que a gente não pode fazer nada com ela.
Eu digo que a gente pode fazer escolhas porque os elementos dados já davam isso como potência, meio aristotélico. A possibilidade de minha liberdade é dada num universo onde os elementos que tornam minha liberdade possível já estão postos nesse universo como potência. E minha liberdade na realidade é a realização desses elementos em ato e eu como sujeito tenho a experiência para conseguir algumas coisas.
O herói trágico não é aquele que não vai contra o seu destino e vencê-lo; ele vai e nisso realiza o seu destino Mas a experiência que ele tem enquanto sujeito é de alguém que fez diferença. Tanto que ele é lembrado, senão ele não o seria. Quando na "Ilíada" a mãe de Aquiles fala para ele - e ele está em dúvida - se você não for para Tróia, você se casará, terá filhos, uma boa esposa, netos e será lembrado; mas se for para Tróia, vai morrer lá e será lembrado por um milhão de anos. Por que Aquiles é lembrado?
Existe uma característica na visão trágica: apesar de seu destino está dado, não significa que você, enquanto elemento, não precisa se bater com ele. É por isso que a condição trágica é exatamente essa do ponto de vista do destino. O herói trágico, que é justamente lembrado, é aquele que entra em conflito com as moiras, com os deuses. O que tem aretê, virtude, o que encantava Nietzsche e todo mundo, como eu, que tem uma sensibilidade trágica.
A tragédia é aquele momento em que os gregos estão começando a tencionar com a submissão total aos deuses; estão em crise com a submissão. Então essa frase para mim representa muito mais não a ideia de que não se tem escolha, mas de que quem escreve o roteiro é um idiota, que a gente corre para um lado e para o outro e que não significa nada. Portanto, é muito mais a consciência de que aquilo que a gente persegue a vida inteira muitas vezes passa o sentimento de que na realidade não vale nada, é vazio.
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
21/3/2013
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
O mundo é pequeno demais para nós dois de Renato Alessandro dos Santos
02.
Nunca fomos tão vulgares de Julio Daio Borges
03.
Por um corpo doente, porém, livre de Lívia Corbellari
04.
Minha lista possível de Luiz Rebinski Junior
05.
Há um corpo estendido no chão de Glória Fernandes
Mais Acessadas de Humberto Pereira da Silva
em 2013
01.
Olgária Matos - 1/2/2013
02.
Toda poesia de Paulo Leminski - 8/5/2013
03.
Mídia Ninja coloca o eixo em xeque - 21/8/2013
04.
Mino Carta e a 'imbecilização do Brasil' - 6/3/2013
05.
O Som ao Redor - 13/2/2013
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|