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Sexta-feira,
13/4/2012
iPad pra todo mundo
Ana Elisa Ribeiro
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É uma festa, uma festa tecnológica. Vamos dar giz pra todo mundo e a educação vai melhorar. Vamos dar computador pra todo mundo e as crianças serão mais inteligentes. A versão nova é dar iPad pra todo mundo e resolver o problema da conexão. Conexão a quê? Com a educação é que não é, né? E o professor? Onde fica? Escondido atrás de seus dispositivos móveis, sem ler nada e sem estudar. Ah, ralando demais pra pagar as contas básicas também. Vamos brincar de forca enquanto o salário não vem.
Desculpe aí o pessoal positivo, alto astral, pró-tecnologia de qualquer espécie, superanimados com as novas possibilidades. Desculpem mesmo, gente. Não consigo ser assim tão feliz. E bem que eu tento. Mas é que minha amiga trabalhava para o estado e uma das tarefas dela era ver o que tinha acontecido com os computadores que as escolas ganhavam. E aí ela viajava léguas, chegava na escola e a diretora (ou o diretor) tinha a maior má vontade pra mostrar onde está o tal do "laboratório de informática". Pronto. Depois de meia dúzia de cafezinhos e de destilar bastante simpatia, lá ia alguém abrir a porta do recinto, depois de muito procurar as chaves perdidas. E certa vez, meio chorosa, minha amiga me contou o cenário que viu quando um desses laboratórios de informática foi aberto: pombos, muitos pombos, faziam as torres das máquinas de apartamentos. Vejam que romântico. Um verdadeiro pombal no meio dos circuitos. Ah, as máquinas sequer haviam sido ligadas.
Num curso que dei em algum lugar, desse tipo de empreitada que dizem que é "reciclar professor" (ai, acho terrível essa nomenclatura que também se aplica ao lixo), os colegas, empolgados com tanta novidade, vinham me contar como era difícil manter as máquinas funcionando em suas cidades. Eram municípios do interior de Minas Gerais. Recebiam máquinas, apoio inicial, etc. etc. Só que computadores, como 99% desses dispositivos, precisam de manutenção. (Os outros 1% não têm mesmo conserto e são descartáveis). O que acontecia era que havia um técnico de informática, funcionário do estado ou terceirizado, não me lembro, para atender algo assim como vinte ou trinta cidadezinhas e suas escolas computadorizadas. Bom, o resultado era que as máquinas iam estragando, iam sendo encostadas e ficavam, quase uma eternidade, à espera do príncipe encantado.
Isso dá aquela sensação de estômago embrulhado, não? A mim, sim. Outro dia, num simpósio em Brasília, eu ouvia o relato, em tom grave, de uma professora de São Paulo. Ela comentava: "o que eu sei desses projetos de um computador por aluno é que a maior dificuldade é o professor saber o que fazer com as máquinas em sala de aula". Bom, bastante compreensível. Se a pessoa não é usuária de web ou de informática, como pensará projetos interessantes para assimilar em sala de aula? Se o indivíduo não tem tempo para estudar e se atualizar, que milagre operarão nele? Melhor: essas máquinas substituem a agência das pessoas? Claro que não. Nem precisa de curso para saber disso.
Tenho colegas que andam saltitantes de alegres com essa história de estados ou o governo dar iPads para os professores. Também dei lá meus pulinhos, mas não eram bem de alegria. É que fico perplexa com a superficialidade das soluções. Fico mesmo embasbacada e chego a perder parcelas de sono por conta disso. Será que é muito difícil de entender? Se alguém não tem condições dignas de trabalho (e de vida mesmo), não adianta dar um iPad, um refresco ou um jogo de resta um pro cara. O negócio é saber o que fazer com as máquinas. Mas deve ser bem difícil de compreender a profundidade desta condição.
iPad é um dispositivo de certa marca para... mandar mensagens, brincar, jogar, escrever (pouco, pouquíssimo), ler (muito) e tal e coisa. Há outras tantas marcas de tabletes (sim, em português) por aí. Fico intrigada com essas palavras que vão e voltam de moda. Moda mesmo. Tablete é um desses casos interessantes. A gente só falava disso em relação a comida, chocolate e assemelhados. Como uma coisa se parece com a outra, talvez alguém tenha dado esse apelido meio metafórico em inglês, tablet. Mas aí a coisa custa a vir para o português.
Não tenho nada contra tecnologia. Bem pelo contrário, como comprovam minhas ações por aqui e por aí. Só que eu fico cansada de certos papos e discursos de vez em quando. Meu amigo Marcelo, da Unicamp, gosta de lembrar que os discursos sobre tecnologias e escola têm sempre um tom de "estou dentro" e você "está fora". Os textos sobre "letramento digital" do professor, por exemplo, têm, em sua maioria, um tom de "vou te ensinar como se faz". E o negócio seria subverter isso e admitir que todos somos aprendizes nessa seara.
Um americano chamado Marc Prensky inventou, num artigo, aquela história dos "nativos digitais" e, por contraste, dos "imigrantes digitais". Isso vem sendo repetido, papagaiamente repetido, no Brasil, a torto e a direito. O pior: muita, mas muita, gente nunca leu os artigos do autor, no original, antes de sair falando disso por aí. E os contornos do que ele diz são bastante discutíveis. Bom, só que essa história colou (na ciência também tem isso) e os nativos seriam esses jovens (só jovens) que sabem muito de computador porque isso lhes é natural. OK. Minha gente, esse discurso de que todo professor é velho, é imigrante e não sabe nada já cansou. Foi com ele que eu comecei esta crônica, aliás. Mas vejam: há, sei lá, cerca de duas décadas os computadores (e a cibercultura, que é dinâmica) estão aí e as pessoas mudaram. Vamos na levada da lógica: professores são pessoas. Se toda pessoa mudou, então professores também mudaram. Touché. Muitos professores se formaram nas faculdades, muitos estão nas salas de aula, fazendo projetos bacanas que empregam ferramentas digitais. O que ocorre é que grande parte desses projetos poderia, tranquilamente, ser feita sem equipamentos eletrônicos. Já vi muitas atividades "modernas" serem cópias quase exatas de velhas tarefas escolares... só que agora com tomadas ou sem fios.
Afinal, o que eu estou dizendo? Que os professores precisam mais de criatividade e do propiciamento de suas inteligências do que de máquinas novas. Sai até mais barato, quem sabe? Se bem que é claro que alguém fez essa conta antes de comprar os iPads. Provavelmente foi assim: se eu der esses brinquedinhos pra esse pessoal vai sair mais em conta do que qualificar todos eles e permitir que eles tenham ampliado seu letramento digital. A conta fecha.
Claro que ganhar iPad é bom. Também quero o meu, ora, bolas. Quem não gosta de ganhar brinde? Todo mundo curte demais um picolé depois do outro, uma necessaire que vem na compra do xampu, etc. Não perco uma. Mas o que vou fazer com ela? Não me venham com aquela resposta que veio primeiro à cabeça. Vamos manter a diplomacia.
Seguinte: professor que ganha mal pra caramba não tem condições de ficar preparando aula bacana nem nos moldes tradicionais, quanto mais com dispositivos que ficam trancados em salas com ar-condicionado. Professor que sabe o que fazer, que deseja experimentar novas tecnologias para dar boas aulas (péssimas aulas também rolam com tecnologia e tudo), faz isso até com os aparelhos celulares dos alunos. Nem se abala com a precariedade da escola. Mas o ideal não é isso, claro. O ideal é crescer todo mundo junto, a informática e, principalmente, o elemento que fica entre a cadeira e a tela do computador.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
13/4/2012
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