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Quarta-feira,
28/3/2012
'Cabeças' de Paulo Francis
Humberto Pereira da Silva
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No final dos anos 70 assistiu-se à revogação do AI-5, na sequência da abertura política iniciada com o presidente Geisel, que se estenderá até 1985, com o fim do regime militar no Brasil. Nesse processo de distensão do regime, os anos que vão de 1977 até 1979 são capitais. Sem o AI-5, é nesse período que ocorre a anistia e o retorno dos exilados: um sopro de liberdade fecha a década mais repressiva da história do país. O jornalista Paulo Francis, que gozava de prestígio nacional com sua participação principalmente no semanário "O Pasquim", zarpara para Nova York em 1971, auge da repressão, e lá se estabeleceu: deliberadamente optou pela vida no exterior, mesmo com o clima de liberdade que se seguiu com a redemocratização do país. De lá, escrevia para grandes jornais no Brasil e fazia aparições em programas de TV.
Culto, inteligentíssimo, elitista, esnobe, sensível a questões que passavam da mais rasteira cena política a discussões filosóficas intrincadas (metia a colher nas querelas entre dois gigantes do século XX, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein), com o nome estabelecido como um dos jornalistas mais lido, discutido e respeitado no Brasil, acalentava o desejo de ser reconhecido como grande romancista. Essa ambição ganhou forma em seu auto-exílio, justamente entre o fim do AI-5 e a anistia. Para levá-la adiante, tinha como matéria prima - fruto de sua vivência boêmia na alta sociedade carioca - sua própria experiência pessoal para fazer um retrato das elites políticas, sociais e culturais no Brasil nos anos de ditadura.
Francis elaborou, então, o projeto de uma trilogia: "Cabeça de papel", "Cabeça de negro" e "Cabeça". Cabeça, a cuca, na gíria da época, aludia à mentalidade reinante. Papel é o meio de que se servem os intelectuais para escrever, num distanciamento inequívoco da realidade; negro é o contato frontal com uma realidade que não cabe no papel. "Cabeça de papel" saiu em 1977, "Cabeça de negro" em 1979, "Cabeça" ficou no projeto. Em 2008 saiu o póstumo "Carne viva", cujo germe estaria na trilogia proposta, mas Francis pouco antes de morrer, em 1997, discutia justamente com o editor, Luiz Schwarcz, mudanças que este lhe sugerira. É o caso, então, deixá-lo de lado e ver com atenção os "Cabeças" publicados no final dos 70.
Nesses dois livros um retrato visceral das elites na Zona Sul carioca nos anos da ditadura. Nesse retrato encontram-se personagens envoltos em intrincadas relações de poder num contexto de repressão e tortura política, mas também enfronhados no ambiente intelectual da imprensa, em discussões infindas sobre as possibilidades do socialismo na periferia e o hiato social entre elite e povo. Nele, ainda, espaço para as relações humanas: uma plêiade de personagens entregues a excessos de bebidas, drogas e à devassidão dos costumes morais e sexuais. Destaca-se nas duas narrativas a figura de Hugo Mann, crítico de cinema e ex-trotskista, que testemunha, comenta, dialoga e discute a realidade que o cerca.
Do ponto de vista estilístico, "Cabeça de papel" é mais pretensioso: um longo monólogo no qual Mann descreve o universo no qual transita Paulo Hesse, editor do jornal conservador no qual ele trabalha, que fora um importante colunista de extrema esquerda antes do golpe de 64. Já "Cabeça de negro" é um matraquear contínuo sobre o Terceiro Mundo em face da revolução, mas que tem ao fundo uma cena de assassinato: o bandido de nome Cabeça de Negro é morto ao tentar assaltar e estuprar uma socialite, Maria, amante de Mann e esposa de Maneco, político e empresário que financia a OBAN, órgão de combate às organizações de esquerda.
Comentários positivos casuais e isolados (Alceu Amoroso Lima e Jose Onofre), ambos foram mal recebidos no ambiente em que Francis ambicionava pontificar (o crítico José Guilherme Merquior anuncia em tom jocoso que "Cabeça de papel" é um treino para uma autobiografia intitulada "Cabeça de vento"). Entregues ao editor Ênio Silveira, os originais de "Cabeça de papel" dão a senha das dificuldades de aceitação do livro. Ênio propôs que fosse lido antes por algumas pessoas sofisticadas que o poderiam entender. Uma das opiniões, de Ivan Lessa, cujo conhecimento literário era respeitado por Francis, foi de que o romance "deblaterava ad infinitum". Essa reação negativa o desencorajou e o levou à depressão. Mas ele recauchutou o livro e, estimulado por sua companheira, Sonia Nolasco, o terminou.
Publicado "Cabeça de papel", Francis empenhou-se na realização de "Cabeça de negro". Terminado, engolfou-se até a cabeça em sua promoção, mas novamente o retorno foi desolador. A frustração das expectativas de ser reconhecido como escritor de destaque o incomodou muito. No livro de memórias "O afeto que se encerra" (1980), ele confessa que chegou a considerar com seriedade antiga obsessão pelo suicídio. Jurou não mais escrever ficção e, de certo modo, acolheu o comentário ao pé do ouvido: "bicho, isso não é contigo".
Não levou o juramento ao pé da letra: "Carne viva" é o registro de que, mesmo ressabiado, manteve vivo o ímpeto para a escrita ficcional. De qualquer forma, a carreira de Francis romancista fica restrita ao período que vai do final dos 70 ao início dos 80. Além da trilogia proposta e incompleta, escreveu também "Filhas do segundo sexo" (1982), mas aqui espasmos e sons guturais de um moribundo: Paulo Francis morreu em 1997, o romancista, com a severa rejeição de seus livros no início dos 80.
Passadas três décadas, vale especular sobre razões que levaram à rejeição de seus romances e, por conseguinte, propor que se reavalie seu valor literário. Nesse sentido, quem quer que se aproxime de "Cabeça de papel" e "Cabeça de negro" hoje, precisa ter em mente dois aspectos essências nos propósitos literários de Paulo Francis. Primeiro, a realização de um projeto literário nitidamente presunçoso. Ele não queria menos que pontuar como o grande retratista da época, situar sua obra no mesmo patamar que a de Francis Scott Fitzgerald, na sociedade americana dos anos 20, ou a de Marcel Proust, na França da belle époque. Segundo, dessa presunção decorre certa ingenuidade em imaginar - justamente porque tem em mira a sociedade brasileira - que o cruel retrato que oferece fosse aceito, com sua literatura reconhecida e legitimada imediatamente.
Com isso, o que vale destacar é: a apreciação dos romances de Paulo Francis implica considerar onde ele queria se situar e, na mesma medida, como isso era inviável, quando se o lê no contexto da época. O final dos 70 foi fortemente marcado pela polarização política e ideológica, traumas, feridas viscerais expostas e vertendo sangue. O frustrado atentado no Riocentro, em 1981, impetrado por seguimentos do serviço de inteligência do Exército receosos com os rumos da abertura, não deixa dúvida de que aquele não era um momento receptivo a provocações literárias de cunho satírico. Tanto mais quando estas vinham da pena de alguém com o prestígio jornalístico de que gozava Paulo Francis.
Assim, quem acompanha hoje a Comissão da Verdade, com debates em torno da Lei da Anistia, punição de militares envolvidos na guerrilha do Araguaia, reabertura do caso Rubens Paiva, precisa ter em vista qual era o clima do país pouco mais de trinta anos atrás. De um lado, vastos seguimentos da direita e facções militares se seguravam como podiam para manter o regime: 1977 é o ano em que o Coronel Erasmo Dias invadiu a PUC, o mesmo ano em que o General Silvio Frota, contrário à distensão empreendida por Geisel, tentou apeá-lo do poder. De outro lado, o movimento estudantil e a UNE se reorganizavam, o movimento dos trabalhadores ganhava visibilidade com as greves no ABC e entrava em cena um personagem capital: Luis Inácio Lula da Silva.
É nesse ambiente marcadamente radical que, de Nova York, Paulo Francis escreveu dois romances nos quais inseriu, sem retoques, personagens das elites em situações sórdidas com toques de sátira, sob influência do escritor romano Juvenal, e profundo niilismo quanto à situação do país e o papel das esquerdas. Um rastreamento com o mínimo de cuidado - o que não será feito aqui -, mostraria que personagens de "Cabeça de papel" e "Cabeça de negro" cruzavam os calçadões do Leme ao Leblon no mesmo instante em que eram retratados por seu autor.
A ingenuidade de Francis deve ser creditada ao sentimento de invulnerabilidade que cultuava desde os tempos em que era crítico teatral, no final dos 50, quando comprou brigas com monstros sagrados do teatro e se impôs. É esse sentimento que o leva a não ter qualquer complacência com as elites, as esferas do poder ou o jogo ideológico à esquerda ou à direita. Interessante notar a esse respeito um traço de caráter. É muito enfatizada sua guinada de posição política: trotskista na juventude, ele se torna conservador na maturidade. Mas, típico de uma juventude que acreditava impulsionar debates, ter um papel efetivo no espaço público, manteve intacto seu comprometimento com princípios sem concessões às esferas do poder. É esse comprometimento que o colocará em atrito com a Petrobrás, pouco antes de sua morte.
Diante de seus "Cabeças", a direita e a esquerda se recusaram a olhar no espelho. E isso revela no fundo o tipo de sociedade que ele acaba descrevendo. Por isso, com ingenuidade, ele imaginou que seus livros seriam aceitos. Seu senso de compromisso em desvendar o submundo das elites cariocas, que não o imuniza de certa egolatria, estabeleceu o estrito limite da aceitação de sua literatura.
Paulo Francis, jornalista famoso pela virulência e impulso à polêmica, sabia que a crônica jornalística não ia além do relato tangencial. Ele queria ir ao fundo e para isso a prosa ficcional, na medida em que, entre outros, esta oferece recursos como monólogo interior ou fluxo de consciência. Assim, ao entrar na psique dos personagens, ele desvela um universo impenetrável na esfera da crônica jornalística. Dá para entender assim, em grande parte, as reservas com que Enio Silveira leu os originais (editor de esquerda, manteve a Civilização Brasileira nos anos de ditadura). Nas suas reservas, portanto, indícios de que a prosa ficcional de Paulo Francis estava condenada. Qualquer que seja a crítica que se faça aos romances de Francis, se não se tiver em vista esse horizonte, o risco de se cair em lugares comuns. Aceitar, sem ajuizamento contextualizado, o dogma que se impingiu, de que escrever romance "não é a dele".
Condenado na época, passados trintas anos, cobertas as cicatrizes da ditadura (assim se evita abrir casos como o do Coronel Curió e os seqüestros no Araguaia), vale reler Francis e especular se o veredito que seus "Cabeças" tiveram não foi tão cruel quanto o retrato que fez (Merquior, seu algoz mais renomado, expressaria mais ressentimento que isenção em sua crítica?). Minha posição é que sim. O valor da literatura de Francis espera apreciação mais isenta. Se ela não ocorrer, o problema não está na obra, mas na afirmação, de fato, de que a sociedade descrita em "Cabeças" se mantém: a incrível afirmação de desesperança sobre a mentalidade de nossas elites culturais.
Com isso o que se quer afirmar, apoiado em Hegel, é que se a finalidade da obra de arte não é em primeira instância servir-se de cópia da realidade nem oferecer ensinamento moral e sim revelar a verdade do espírito, "Cabeça de papel" e "Cabeça de negro" estão longe do desprezo de sua recepção. Assim sendo, quem tem interesse sério pelo assunto e não lê romances isolados nos quais o nome do autor é mera etiqueta publicitária, basta colocar lado a lado Paulo Francis e outros escritores que circularam entre os anos 60 e 70 e que tiveram por alvo as elites brasileiras nos anos da ditadura. Com um diálogo incessante com a literatura moderna - Henry Miller, James Joyce, William Faulkner -, influência de satíricos antigos, Juvenal principalmente, e forte teor niilista, ele assumiu riscos que poucos escritores no período se dispuseram a correr.
Relegar Paulo Francis como romancista implica relegar os propósitos de sua escrita, cujo peso não encontra tantos paralelos nos que se aventuram na arte literária. Aventura que, para muitos, repousa em clichês de aceitação. O problema maior de Paulo Francis não é o que escreveu, mas supor que seria aceito sem concessões, que sua literatura seria imediatamente legitimada entre os críticos. Questão bastante diversa, e que confunde, refere-se à sua pretensão. Seria ele nosso Fitzgerald? Seus romances teriam o poder literário de se ombrear, em âmbito nacional, com escritores como Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Oto Lara Resende, Dalton Trevisan? Ou sua literatura merece destaque exclusivamente em função de seus propósitos, do que estava em sua cabeça?
Num caso ou no outro, o que se coloca em pauta é que "Cabeça de papel" e "Cabeça de negro" merecem e devem ser rediscutidos. Não se trata de um romancista a se desprezar sem se ater às consequências. Sua literatura é o outro lado da moeda, quando se tem em vista sua prática jornalística. É o lado escuro da lua que, mesmo admiradores confessos, como Daniel Piza, autor de perfil biográfico de Francis, não se curvaram para enxergar, sob o credo de que literatura "não é a dele". A se manter esse credo, uma sentença que pode ser extraida de seus textos jornalísticos: mantemo-nos no patamar de uma cultura de filisteus. Um país em que se conta nos dedos das mãos o número de grandes escritores, só reafirma sua condição "subcultural" ao se dar ao luxo de colocar Paulo Francis no limbo literário.
A fortuna crítica de uma obra depende de vários fatores. A história da literatura está repleta de autores que só foram reconhecidos muitos anos depois. Isso depende em grande parte do esforço de compreensão, do empenho para ver sinais despercebidos, em escapar de dogmas e clichês estabelecidos. E assim encontrar na obra um poder de síntese e desvelamento que só a passagem do tempo propicia. Nesse sentido, com certo otimismo, aguardo o momento em que a prosa ficcional de Paulo Francis seja discutida com seriedade. Longe, portanto, de lugares comuns, patrulhamentos ou clichês formais do que é literatura "limpa", bem feita conforme o gosto comum.
"Cabeças", de Paulo Francis, espera uma leitura feita ao lado de Jean Genet ou Louis-Ferdinad Céline. Tão incensados por aqui, apesar da "sujeira" formal. Assim, se se admite que sua literatura não prima pela "limpeza" estilística, que se considere a dimensão de seu propósito e lhe seja dado o lugar a que faz jus: se não um Fitzgerald, a figurar nos dedos das mãos como um lúcido, franco e cruel retratista de nossas elites nos anos da ditadura.
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
28/3/2012
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