COLUNAS
Quinta-feira,
19/4/2012
Tolos Vorazes
Vicente Escudero
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Katniss mirando na audiência
Qual o cenário mais improvável sobre o futuro da humanidade que você já imaginou? Seria algo próximo da existência de uma confederação de estados controlada por um Estado opressor e autoritário, que obriga a participação de crianças em uma competição pela sobrevivência? Provavelmente não. Nem mesmo a pior das metáforas sobre o descontrole do poder estatal ou o sonho mais estapafúrdio sobre o clássico O Senhor das Moscas conceberia o que se apresenta no cinema sob o nome de Hunger Games.
A primeira adaptação para o cinema da trilogia criada pela escritora Suzanne Collins tenta explorar temas sérios, utilizando crianças como protagonistas de uma batalha pela sobrevivência promovida pelo que sobrou do governo dos Estados Unidos. Depois de uma guerra interna, o Estado vencedor (a Capital) assumiu o controle do país, agora chamado Panem, e a exploração dos territórios derrotados (onze distritos). Para demonstrar sua supremacia sobre os demais, todos os anos dois jovens de cada um dos doze distritos são escolhidos pelo poder da Capital para participar de uma competição pela sobrevivência chamada Hunger Games, em que apenas um dos participantes, o sobrevivente, pode sair vencedor. Tudo é transmitido pela televisão e controlado pelo poder organizador da Capital, que altera as regras durante a competição e manipula o campo de batalha para interferir no desempenho dos participantes.
O tom épico da história é responsabilidade total da heroína Katniss Everdeen, interpretada por Jenniffer Lawrence. Habitante de um dos estados controlados, o Distrito Doze, e vivendo na pobreza com a mãe e a irmã, a heroína encarna a resistência contra a intimidação da Capital ao assumir a condição de voluntária nos jogos, substituindo sua irmã, Primrose Everdeen, na ocasião da colheita, o sorteio dos participantes da competição em cada um dos distritos.
O roteiro é uma adaptação fiel do primeiro livro de Suzanne Collins. A primeira meia hora do filme é uma reprodução exata do primeiro capítulo do livro. Esta escolha do diretor Gary Ross é inadequada e deixa o espectador perdido porque a estrutura do livro permite a descoberta gradual de todos os elementos que sustentam o núcleo da história, desde a transformação dos Estados Unidos até o passado dos personagens, ao contrário do roteiro do filme, que parte do início do dia da colheita até o resultado final dos jogos sem analisar estas informações vitais, tratando apenas do tempo presente. Este fato compromete a adaptação para o cinema, que não pode ser comparada sequer a uma distopia, pois o ambiente futurístico reproduzido não passa de mise en scène para o excesso de efeitos gráficos e a disputa frenética pela sobrevivência durante os jogos, uma isca fácil para os ingressos do público jovem.
E os problemas do filme não são poucos. Difícil imaginar que uma trilogia como a de Suzanne Collins, voltada para o público juvenil, viesse a se tornar um clássico do cinema depois de adaptada. Entretanto, a seriedade dos temas discutidos nos livros, como os dilemas éticos enfrentados pelo ser humano lutando pela sobrevivência e sua condição perante um Estado assassino e opressor, exige um tratamento cinematográfico menos ingênuo e espalhafatoso para se tornar, no mínimo, relevante. Na sua indefinição entre entretenimento blockbuster e a discussão sobre a condição humana, Hunger Games ficou muito distante do último.
As escolhas dos rumos do filme são confusas e o roteiro é repleto de omissões. Não existe um mundo cercando Panem. Embora os Estados Unidos tenham se tornado esta estranha Confederação contrariando todas as leis internacionais, não existem outros Estados no mundo para questioná-lo. O planeta se resume a Panem matando suas crianças e nada mais. A quarentena dos participantes dos jogos, um período interessante para explorar as emoções e personalidades dos personagens não passa de uma sucessão de demonstrações de habilidades atléticas. A barbaridade dos assassinatos nos jogos é suavizada por efeitos especiais, talvez para diminuir a classificação indicativa do filme, suprimindo também a crítica à violência. Em sua essência, a história é distorcida para acomodar elementos que servem para trazer conforto ao espectador. O resultado é um pastiche de melodramas.
Outro problema é a câmera em movimento constante tentando transmitir de forma descontrolada senso de urgência, durante quase todo o filme. Até mesmo à noite, enquanto Katniss descansa sobre o galho de uma árvore, a câmera não para. Em vez de alcançar a medida dos documentários, o estilo de filmagem só contribui para diminuir a importância das cenas principais e a intensidade da história.
A trilogia literária de Suzanne Collins tem o mérito de deixar para a criatividade do leitor o preenchimento das lacunas de um mundo em escombros. O filme não possui esta característica e deixa de lado os temas principais explorados no livro para apresentar um conjunto de detalhes que serve apenas à satisfação do interesse dos fãs da trilogia. Tudo é muito calculado para não sair do perfil de blockbuster épico, filme com um conjunto de elementos que confortam o espectador e apresentam apenas uma superfície de relevância. As crianças lutam pela sobrevivência, mas essa luta não é tão violenta. Mesmo sendo impossível mais de um vencedor nos jogos, inexplicavelmente, elas se aliam em grupos e dormem lado a lado no campo de batalha, uma espécie de matadouro humano. Nesta mistura de crianças de O Senhor das Moscas com policiais vestidos de Stormtroopers e personagens copiados de O Mágico de Oz, Hunger Games pode ser considerado o maior meme produzido pelo cinema nos últimos tempos.
Vicente Escudero
Campinas,
19/4/2012
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