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COLUNAS
Quinta-feira,
31/5/2012
Dono do próprio país
Carla Ceres
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Certas verdades proverbiais nascem aos pares. Gêmeas fraternas, apontam direções contrárias, endossam comportamentos opostos. Ainda assim, continuam ambas verdadeiras e aceitáveis dependendo da situação e da cultura que lhes dá guarida.
Herdamos dos portugueses o "Não deixe para amanhã o que puder fazer hoje", conselho de quem precisou fazer-se ao mar para sobreviver. Caindo em nosso solo inculto, a máxima prosperou, mandou buscar os parentes de além-mar e teve muitos filhos. A cultura do "Fia e porfia" ganhou até as bênçãos do Criador: "Deus ajuda a quem cedo madruga."
Porém nenhum provérbio governa sozinho. Para garantir um relativo equilíbrio à sabedoria popular, os gêmeos opositores entram em ação: "Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga" e "Deixe para amanhã o que não precisar fazer hoje." Nunca ouviu esse último conselho? Garanto que existe. É um parente mais radical do "Dê tempo ao tempo." Sua lógica tranquilizadora faz sentido porque algumas situações difíceis se resolvem sozinhas.
Embora a mesma cultura abrigue máximas discordantes, um dos lados costuma predominar. Provérbios não gostam de ensinar o pai-nosso ao vigário. Se quiser ter uns vislumbres da alma de um povo, procure descobrir quais conselhos ele repete com frequência. Temerários aconselham cautela; esbanjadores louvam a economia. Ninguém precisa estimular pessoas sossegadas a pegar leve e deixar trabalho para amanhã, pois já faz parte de seu modo de vida socialmente aceito.
Quando se trata de "ganhar o pão com o suor de seu rosto", quase todas as culturas recomendam esforço e persistência. As honrosas exceções são povos que vivem na escravidão, tendo que labutar em benefício alheio. Grupos oprimidos podem até repetir que "o trabalho dignifica o homem", mas encontrarão desculpas e subterfúgios para continuar inativos.
Não vejo o brasileiro como um Macunaíma entregue à preguiça. A aversão ao trabalho é universal. Trabalhar desmotivado cansa e entedia qualquer indivíduo que ainda não esteja embrutecido pela rotina. Também não aceito o retrato retocado que Monteiro Lobato fez de nossos caipiras, um Jeca Tatu patologicamente indolente, porém curável com um vidro de Biotônico Fontoura.
O brasileiro atual tem melhor saúde e é capaz de grandes esforços em benefício próprio ou em atividades lúdicas e assistenciais que lhe interessem, mas, por baixo de toda essa energia, impera a velha malandragem que mandava fazer corpo mole diante de um patrão opressor. Quando nos cobram obrigações e deveres, regredimos historicamente e nos percebemos como escravos colonizados, cuja revolta só pode se manifestar através da resistência passiva e sonsa. Viramos mestres da enrolação.
Assumimos compromissos "pra inglês ver", depois nos indignamos quando não nos levam a sério. Aliás, dizem que a expressão "pra inglês ver" nasceu em 1831 quando a Inglaterra tentava obrigar o Brasil a abrir mão do trabalho escravo. A pressão britânica levou nosso Governo Regencial a promulgar uma lei garantindo liberdade aos negros que aqui aportassem. Até os ingleses sabiam que a lei não seria cumprida como, de fato, não foi.
Seja ou não descendente de escravos, boa parte dos brasileiros atuais se comporta como se não fosse dono do próprio país. Mal cumpre suas obrigações, sente-se esperto por isso e quase nunca exige seus direitos como deveria. Na escola, estuda o mínimo possível. Depois reclama que seu diploma não lhe garante uma boa colocação. Exigir ensino de qualidade jamais lhe passa pela cabeça. Há muitos engenheiros mal formados trabalhando como técnicos. Quantos bacharéis em direito acabam desistindo de advogar porque não passam no exame da ordem? O país está cheio de faculdades que fornecem diplomas "pra constar" e despejam doutores "inempregáveis" em suas áreas.
Quando o governo entra na equação, o resultado piora. A iniciativa privada pode cobrar desempenho de seus funcionários e demiti-los por incompetência. O setor público fornece emprego garantido, sem grandes cobranças. Sim, os concursos são difíceis, mas, uma vez superados, só trabalha a sério quem for honesto e forte o suficiente para resistir a maus exemplos, facilidades e coações.
Boa parte de nossos empresários também prima pela incorreção quando presta serviços a estados e municípios. A principal justificativa para esse comportamento é que até a união paga mal e com atraso. Empresas de todos os portes ganham licitações prometendo o impossível a preços irrisórios. Tudo bem, não pretendem cumprir mesmo. Cabe ao povo exigir qualidade nos serviços pelos quais paga muito e pontualmente. Precisamos ser donos do nosso país.
Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/
Carla Ceres
Piracicaba,
31/5/2012
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