COLUNAS
Quarta-feira,
18/7/2012
O que em silêncio sabemos
Marilia Mota Silva
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" ...Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser?
Foi assim que conheci Clarice e foi amor à primeira lida.
"A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma."
O mesmo se poderia dizer de Macabéa, de A Hora da Estrela, que li em seguida. Moça franzina, sem pai nem mãe, criada por uma tia beata. Datilógrafa numa firma de representantes de roldanas, na Rua do Lavradio, Macabéa não sabe nem porque veio de Alagoas para o Rio. Um parafuso dispensável na sociedade. Mais radicalmente menos é impossível. E, ainda assim, ela sonha e ama e quer viver.
O que seria esse impulso, a vida que se manifesta de maneira tão pungente, mesmo nos seres mais insignificantes? Do que é feito o coração da vida?
Logo depois de Macabéa, comecei a ler A Macã no Escuro, como se fosse um romance como outros. Desisti duas vezes, ainda nas primeiras páginas. Quando tentei de novo, percebi que me sentia perdida não por falta de atenção, mas porque Clarice queria assim: que o leitor vivenciasse a confusão de Martim, seu lento emergir para a consciência, que visse o mundo com seus olhos, como se fosse a primeira vez. Isso entendido, o que se segue é um vórtice, um mergulho nas questões básicas que nos acompanham e assombram a vida inteira; questões que nos definem como espécie e que, num acordo tácito, costumamos, sabiamente, deixar de lado. Clarice, talvez porque fosse ainda muito jovem, atira-se à empreitada como quem não tem escolha.
"Em vez de acordar e diretamente ouvir, foi através de um sono ainda mais profundo que Martim passou para o outro lado da escuridão e ouviu o ruído que as rodas fizeram..."(14)
"...Tendo dentro de si o grande espaço vazio de um cego, ele avançava.(19)"
Martim emerge da escuridão, aos poucos, com fiapos de memórias, sonhos. Ele teria cometido um crime, ou melhor, um crime tinha lhe acontecido(40), não se sabe qual ainda, e ele não quer pensar, insidioso vício: "então não seria uma pessoa capaz de dar dois passos livres sem cair no mesmo erro fatal? Com enorme coragem, aquele homem deixara enfim de ser inteligente".(33) "Porque mesmo a compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras. Mas restava a desobediência.(34)
Se pudéssemos eliminar a camada superficial da mente onde os pensamentos se traduzem em palavras, o que seríamos? Estúpidos e livres talvez ( como as galinhas). "Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria. E no entanto, oco, mudo, rejubilava-se. A coisa estava ótima."
Depois de atravessar um deserto em longa caminhada solitária, Martim chega ao topo de uma montanha e vê ao longe uma casa, um homem, cachorros, árvores, um vulto de mulher no alpendre (53). É Vitória, a proprietária de tudo. Lá vivem também sua prima Ermelinda, uma mulata jovem e uma menina preta.
Martim passa a trabalhar sob as ordens de Vitória, entre o depósito de lenha e o terreno " da era terciária, quando o mundo com suas madrugadas nada tinha a ver com uma pessoa; e quando o que uma pessoa poderia fazer, era olhar. O que ele fez.(81)
Seu estágio de consciência é de pouco mais que uma planta. "Naquele porão vegetal que a luz mal nimbava, o homem se refugiava calado e bruto como se somente no princípio mais grosseiro do mundo aquela coisa que ele era coubesse...O silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão: ele grunhia aprovando.(82)
Por ordem de Vitória, ele passa a trabalhar no curral. Sente repulsa no começo, mas não por muito tempo. "Em júbilo trêmulo, o homem sentiu que alguma coisa enfim acontecera. Deu-lhe então uma aflição intensa como quando se é feliz e não se tem em que aplicar a felicidade."Martim respirou profundamente. Pertencia agora ao curral. E enfim pôde olhá-lo como uma vaca o veria. O curral era um lugar quente e bom que pulsava como uma veia grossa. Era à base dessa larga veia que homens e bichos tinham filhos....Era por causa dessa pulsação que as montanhas eram longe e altas. Era por isso que as vacas molhavam o chão com um barulho forte...aquele era um lugar quente que pulsava".
Impossível registrar as incontáveis ideias, sugestões, subtemas que o livro apresenta. A representação do masculino/feminino, por exemplo, é original, divertida e aguda. Diz o indizível. O livro é todo um caleidoscópio , em que as metáforas e imagens assumem o lugar, o valor e a força dos conceitos. Mesmo assim ela não perde o pulso da narrativa.
E o nascimento dessa estranha ânsia foi provocado, agora como da primeira vez em que pisara a encosta, pela visão de um mundo enorme que parecia fazer uma pergunta. E parecia clamar por um novo deus que, entendendo, concluísse desse modo a obra de outro Deus. Ali confuso sobre um cavalo assustado, ele próprio assustado, num segundo apenas de olhar Martim emergiu totalmente e como homem.
No mesmo instante também se sentiu inteiramente incompensado."(114)
Quando, no começo do livro, ficamos sabendo que Martim "estava no coração do Brasil" (20), a informação parece deslocada. Se a viagem é interior, metafísica, a geografia não deveria importar. Páginas adiante, vê-se que o esclarecimento não era gratuito: Somos inseparáveis de nossas circunstâncias. Martim está no coração do Brasil e no sítio há uma velha macieira, árvore que não temos, mas faz parte de nós, de nossa visão do mundo, como símbolo da sabedoria e do pecado de se desejar o conhecimento. Da mesma forma conceitos como culpa, salvação, redenção, coração de Jesus exposto, Deus e santos acompanham o herói em sua jornada. Somos nossa cultura, o meio que nos cerca, assim como o peixe deixaria de existir fora da água. O filósofo Heidegger aborda isso em sua investigação do ser. Da Sein, a condição humana, o estar no mundo na mais absoluta contingência, sem a menor justificativa, e precisando inventar-se. Pode ser que Martin Heidegger tenha inspirado Clarice, e o nome de seu personagem, incomum no Brasil, seja uma alusão e homenagem a ele. Voltando ao sítio:
Vitória ordena que Martim ponha abaixo a macieira; Martim reluta mas acaba obedecendo. Atinge a velha árvore com machadadas precisas mas não consegue derrubá-la. Ao contrário: ferida, a macieira ganha vida nova, se fortalece.
Impossível recuperar a inocência ou a estupidez que nos libertariam.
""A rosa que inadvertidamente ele tocara no jardim deixara-o escoiceante como um cavalo que retém o galope....Ninguém jamais teria por um segundo se defrontado com o oco de onde saem as coisas sem ficar para sempre com a indocilidade do desejo. Picado por uma vontade de aproximação estava indomesticável e afoito. Que é que eu tenho, estranhou-se. Alerta, farejante. Um minuto depois reconheceu que estava no estado de alma de agir ou de amar. Acontecia que ele não podia fazer uma ou outra coisa: não tendo prática de lidar sem se ferir com o ato criador, evitou-o.(178)
O esforço para apreender o mundo em sua totalidade, liberto de toda a carga cultural, inclusive da linguagem se mostra extenuante.
"No ponto em que estou, mudo e cansado, tenho nojo de contorções de alma e nojo de palavras. (263)" "Você fala demais em coisas que brilham; há no entanto um cerne que não brilha. E é este que eu quero. Quero a extrema beleza da monotonia. Há alguma coisa que é escura e sem fulgor - e é isso que importa." (264)
A certa altura, desiste, com muito esforço. Faz-se fraco, submisso, hermafrodita, na tentativa de se ajustar ao mundo.
"E reencontrou com humildade farejante - como um cão sem dentes mas com dono! - o mundo velho, onde ele era enfim alguma coisa, nós que precisamos ser alguma coisa que os outros vejam, senão os próprios outros correrão o risco de não serem mais eles mesmos, e que complicação então!" (314)
O enigma da vida, podemos pressentir mas não apreender. Exprimir em palavras, talvez, mas seria preciso um rio de palavras, um livro inteiro que Martim se propõe a escrever, deixando o inexplicável inexplicado, que o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós. E, quem sabe, a sua seria a história de uma impossibilidade tocada. Do modo como podia ser tocada: quando dedos sentem no silêncio do pulso a veia.(318).
A jornada chega ao fim com a volta do herói ao ponto de partida, sua rendição aos homens pequenos e confusos de Vila Baixa "onde os únicos recursos são os do espírito". (214)"-Ele na certa sabia que era impossível fugir, aventurou o de fumo na lapela que era uma das pessoas mais espertas que Martim criara." (322)
Clarice é puro pensamento poético. Cada vez que se abre uma página, ao acaso, há um espanto de primeira vez: são preciosas imagens, ideias, fragmentos que abrem janelas para outros mundos; é um fluir indomável, uma espiral em movimento contínuo, uma pulsação que não descansa. Talvez não seja o livro ideal para se ler nas férias, entre o almoço descansado e a sesta, mas é um livro para se ter na cabeceira. Qualquer parágrafo inspira uma viagem.
E o texto em si é de uma beleza inesgotável .
PS: 1. A Maçã no Escuro, Editora Rocco, 1998
2.Carta de Clarice a Fernando Sabino : "Apenas desejo intensamente que você não avance demais para não cair do outro lado. Você tem de ser equilibrista até o fim da vida. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame já percorrido e do arame a percorrer - e sempre tendo de exibir para o público um falso sorriso de calma e facilidade. Tem de fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse sempre a primeira vez, e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso."
3."Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."
4. O Rio de Clarice, programa imperdível para quem for ou estiver no Rio. Iniciativa da escritora, biógrafa de Clarice, Teresa Montero.
Marilia Mota Silva
Rio de Janeiro,
18/7/2012
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