COLUNAS
Quarta-feira,
8/8/2012
Dark (k)night rises
Marilia Mota Silva
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Quando houve o ataque às torres gêmeas, Bush foi à televisão dizer ao povo que fosse às compras. O comércio respondeu com ofertas tentadoras: carros a juros zero, sem entrada, quase na base do dois por um.
O consumo é uma das molas-mestras que impulsionam a economia dos EUA. Crédito fácil é outra; o poder aquisitivo dos salários é limitado, e consumo intenso pressupõe endividamento.
Antes da crise de 2008, empurravam cartões de crédito em cima de qualquer um que fosse pego desavisado. Ofertas de empréstimos, acompanhadas de sugestões do que fazer com o dinheiro extra chegavam todas as semanas: que tal comprar um barco, uma casa na praia, um rancho nas montanhas? Bastava renovar a hipoteca de seu imóvel. Quando veio a crise, os mesmos solícitos banqueiros não hesitaram em tomar as casas dos que ficaram inadimplentes, mesmo que já tivessem pago a maior parte das prestações. Se é justo ou moral, não vem ao caso. É legal, são as regras do jogo.
Empréstimo para pagar a faculdade (student-loan) é outra "instituição" aqui, quase um rito de passagem. O jovem tira o empréstimo, em seu nome, e isso lhe dá tranquilidade para estudar durante anos. Com o empréstimo, ele paga a universidade, os livros e ainda recebe uma ajuda em dinheiro, a cada semestre. As condições são muito favoráveis, os juros subsidiados mas, mesmo assim, o ex-aluno fica preso ao compromisso durante décadas depois de formado porque o montante a pagar é alto.
Esses serviços de crédito formam como uma indústria à parte. E há várias agências que monitoram a vida financeira das pessoas. Se lhe derem nota baixa, você se torna quase um pária. Não consegue nem por um sistema de segurança em sua casa ou assinar a Netflix, contas de poucos dólares por mês. E a nota pode ser baixíssima se você prefere pagar à vista. Os critérios que usam podem ser discutíveis, isso não importa. Importa é que eles tem poder de infernizar sua vida. Resumindo: o cidadão é forçado a se endividar para ganhar nota boa dessas agências. Também é aconselhável contratar-lhes os serviços.
As companhias de seguro são outra área poderosa nessa composição. Ninguém assina uma escritura sem ter a casa segurada contra praticamente tudo. E os bancos que financiam a hipoteca também seguram a casa, já que ela lhes pertence até que a última prestação seja paga. O banco segura para si e inclui a conta na prestação do cliente - que raramente percebe aquela parcela entre tantas outras. É preciso ficar atento. Empresas com centenas ou milhares de empregados fazem seguro-de-vida para eles. Predominando gente de meia-idade para cima, as mortes não são eventos raros, e lhes rendem um bom dinheiro. As famílias nem ficam sabendo. É um tanto repulsivo mas é legítimo.
Carro, nem se discute, precisa de seguro. Saúde também. E essa é uma indústria truculenta e poderosa como mostra a luta de Obama para conseguir algumas reformas. Se uma pessoa não tiver nada de seu, casa, emprego, é atendida, sim, e não paga nada. Mas se tiver qualquer coisa, salário, casa, investimentos, e não tiver seguro-saúde, pode perder tudo, pagando hospitais, remédios e médicos, a preços exorbitantes. Isso torna o seguro-saúde muito aconselhável mas os preços e algumas exigências são desanimadores. Se a pessoa for mais velha ou se tiver uma condição crônica qualquer, pressão alta, diabetes , problema cardíaco, pode esquecer. Se, com muita insistência e muita sorte encontrar companhia que a atenda, o preço vai estar na estratosfera. Isso deve mudar , espera-se, a partir de 2014, agora que a Suprema Corte aprovou, em parte, a reforma proposta por Obama.
Para completar essa equação, é preciso que haja uma cultura do desperdício. Por maior que seja a voracidade humana, temos só um estômago, dois olhos, enfim, um corpo apenas e um certo tempo de vida. O espaço em nossas casas para armazenar tralhas também tem limite. Então é preciso jogar fora, não ficar consertando o que foi quebrado, é preciso criar produtos com obsolescência programada para períodos cada vez mais curtos. Um exemplo: um dos suspiros do fogão de minha casa parou de acender. A parte elétrica, tudo funcionava mas ele não acendia. Chamei a assistência técnica. O fogão estava com quatro anos, ótimo, novinho, a não ser por isso. "O problema é no computador embutido lá atrás", o técnico me disse, indicando com um gesto vago, o painel cheio de luzes e apitos, como se "lá atrás" fosse a escada de Jacob, um lugar inalcançável, mítico. Antes de me apresentar o orçamento, disse que por mais 50 dólares eu compraria um fogão zerinho, mais moderno. Não me cobrariam o preço da visita, fariam a instalação e levariam o fogão velho embora, de graça; se eu comprasse o fogão novo da mesma marca, é claro. Dispensei a generosidade, paguei a visita, e conservei o fogão com uma trempe avariada e quatro boas. Achei uma canalhice da empresa mas, dentro da ótica dos negócios, a estratégia de venda é legítima.
Outro exemplo: desde cedo as crianças na escolinha aprendem a jogar fora os lanches que não comeram, mesmo que estejam intocados. Não é má-fé ou incompetência das professoras. Faz parte da cultura. Vamos clean-up e lá vai tudo para o lixo, potinhos, caixinhas, frutas inteiras. É coisa à toa, eu sei. Seria mais complicado ensiná-los a guardar cada coisinha de volta. Mas essa atitude tem um peso importante: é a novíssima geração assimilando valores.
O trio Consumo, Crédito e Desperdício, com o sistema de seguros garantindo tudo, tem outro papel fundamental na economia: são os eixos e arreios que mantém o cidadão firmemente atrelado à carroça. Dependente do seguro-saúde, pago pelo empregador, se ele tiver sorte, pagando a hipoteca da casa, os seguros do carro, da casa, de tudo - eles nem respiram sem seguro - e consumindo, normalmente, acima do que ganham, eles trabalham a vida toda, com pouquíssimas férias.
É uma corrida atrás do rabo, uma armadilha que torna a vida do cidadão mediano estressante e limitada.
Os filmes de ação americanos, com sequências infindáveis de destruição em larga escala, parece-me, são produto e instrumento dessa ideologia. A mensagem subliminar seria: destruir é bom, catártico, excitante. Na explosão final, na destruição de tudo, vão-se os medos, ameaças e todos os bandidos. E tudo bem com o prejuízo: o seguro paga.
Isso nao foi sempre assim. Uma vez li, numa revista antiga, uma entrevista com a Joanne Woodward, atriz, mulher do ator Paul Newmann, lamentando o comportamento dos filhos. Quando quis ensiná-los a limpar os pentes de cabelo, como ela fazia, usando água morna e gotas de amônia, a reação deles foi de espanto e descaso. Eles jogavam fora, qualquer outra atitude seria um absurdo. Ela nao entendia.
Quando li isso, fiquei contente como alguém que encontra um fóssil perfeito, a pré-história. Ela vivia ainda com os valores do New Deal que ajudou a corrigir o capitalismo sem rédeas dos anos 20 e da Grande Depressão. Em algum ponto, e não faz tanto tempo, o sonho americano perdeu o rumo, com consequências nefastas para quase todo mundo. Para manter o foco só no plano interno: Índices alarmantes de obesidade mórbida, diabetes, problemas cardíacos e pressão alta que atingem inclusive as crianças. Crianças tratadas com remédios fortes para "doenças" de comportamento que, décadas atrás, seriam curadas com paciência, disciplina e palmadas. Os efeitos debilitantes e sequelas desses remédios, quem sabe? Rios de Prozac e drogas assemelhadas para curar o sentimento de extravio de si mesmo, de caos, de falta de sentido. Bom para a indústria de alimentos, farmacêutica, da saúde, todo o complexo que cria e vive dos males provocados por esse estilo de vida, mas para os demais, o preço é alto.
Wall Street é outro bom exemplo, com seus executivos recebendo milhões em bônus, em plena crise, indiferentes à devastação na economia e na vida das pessoas, que eles mesmos causaram; e lutando com todas as armas para que tudo continue como está, sem regulamentação. Mefistófeles sorriria orgulhoso de seus pupilos.
O jeito americano de viver atravessa uma fase crítica, mas há conquistas que resistem e seria uma tristeza se se perdessem. A que mais me impressiona, invejo mesmo, é que seus benefícios - conquistas de décadas passadas - alcançam todo mundo. Vai-se a uma pequena fazenda distante, no meio-oeste, no meio do nada, e lá se vê que as pessoas tem acesso ao mesmo nível de conforto que tem as pessoas na cidade. Calefação, energia, água limpa, abundante, quente e fria, todos os eletrodomésticos, internet e a rede admirável de estradas que cobre o país inteiro. Vive nas ruas aqui (nunca vi uma criança) quem tem problemas mentais, de alcoolismo e drogas. Há abrigos para eles na cidade, prédios localizados em lugares centrais, acessíveis. É o que tenho observado em Washington e nas viagens de carro por quase todos os Estados.
Outro aspecto que admiro são alguns valores que fazem parte do DNA cultural deles. O direito de escolha, de dirigir a própria vida, de fazer o melhor por si próprio a par do sentimento de solidariedade e responsabilidade pelo conjunto, pela nação. Eles não tem alma "casa grande e senzala"; não esperam o salvador da pátria; não reverenciam a pessoa do presidente como meu guru, meu guia (só os que já se tornaram história). Tomara que esses valores prevaleçam contra a ganância, o egoísmo, a truculência desse momento em que o laissez-faire capitalista ganha fôlego de fundamentalismo religioso.
Marilia Mota Silva
Washington,
8/8/2012
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