COLUNAS
Quarta-feira,
3/10/2012
Carregando o Elefante
Marilia Mota Silva
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"Sempre foi assim! O Brasil não tem jeito", costumamos dizer, em impotente desespero, diante do deboche dos que estão no poder por nosso voto, garantidos por leis que eles mesmos criaram e pela impunidade que apodrece a nação. O sistema que nos sufoca e mantém no atraso é como uma figura mítica, elusiva, o dragão invencível que ninguém sabe onde se esconde: na rede intrincada de leis, na história, na cultura, em nós mesmos?
Os economistas Renato Feder e Alexandre Ostroweckim não se deixaram intimidar pela complexidade do problema. No livro Carregando o Elefante, dissecam o Estado frankstein que emperra o desenvolvimento do Brasil e amarga nossa vida. Sistema tributário, penitenciário, previdenciário, trabalhista, educacional, a legislação das drogas, as polícias, o judiciário criminal, os três poderes nos três níveis, nada foi deixado de lado. A linguagem clara e objetiva torna a leitura fácil, mesmo na tela.
Em parte as sugestões revelam a mesma motivação que inspirou François Hollande, em seus primeiros dias no governo da França, e que empolgou meio mundo: diminuir os privilégios abusivos dos que vivem às expensas do povo. Um consenso notável entre filosofias divergentes. Mas o escopo do livro é mais ambicioso:
" Uma mudança profunda na direção certa, mental e estrutural, pode levar o Brasil a um verdadeiro círculo virtuoso. Estamos falando de um país de crescimento econômico rápido, de melhoria de indicadores sociais, de uma educação que nos impulsione à frente de qualquer outro lugar. De um Brasil onde as regras do jogo estão claras e as oportunidades são imensas para qualquer um atingir o máximo que a sua própria capacidade permitir. Esse país pode ser daqui a vinte anos o melhor lugar do planeta para se viver. É querer demais?"
Uma mudança profunda mental e estrutural certamente não é pouco. " É um enorme desafio", os autores reconhecem. "Como esperar que o grupo atualmente mais beneficiado pelo status quo, resolva mudar alguma coisa? A classe política é numerosa, poderosa, rica, e está muito feliz com o modo como as coisas andam no Brasil. O que nesse mundo teria capacidade de fazê-los mudar de ideia e votar pela destruição do próprio palácio de privilégios?"
O voto é das poucas armas de que dispomos e a reforma do nosso sistema eleitoral das mais urgentes:
"...Devido a uma distorção chamada "quociente eleitoral", os votos costumam ser transferidos dos deputados mais votados para os menos votados. Nas eleições de 2010, por exemplo, apenas 7% (sete porcento) dos deputados federais chegaram ao poder com seus próprios votos, segundo o Tribunal Superior Eleitoral."
A figura do Suplente de Senador é outra aberração do nosso sistema.
Cada candidato pode escolher o suplente que quiser. Pessoas de quem o eleitor nunca ouviu falar assumem o cargo de Senador com suas incontáveis benesses, salários, esquemas sem nunca terem recebido um voto. Não surpreende o descaro com que aumentam os próprios salários e defendem privilégios ofensivos ao povo que se sacrifica para sustentá-los.
Outro absurdo é a quantidade de candidatos, números, nomes que tornam impossível uma escolha sensata. Por exemplo, no caso dos deputados de São Paulo, mais de 28 milhões de eleitores precisam escolher entre 1131 candidatos para preencherem 70 vagas na Câmara Federal. "Dada a magnitude do eleitorado e do grande número de candidatos, é praticamente impossível alguém fazer uma escolha ponderada e consciente. Se os eleitores decidirem estudar cada candidato por uma hora, levariam quase dois meses, dia e noite, para concluírem a análise."
O voto distrital é a solução proposta. Cada candidato concorre somente no seu distrito. Isso tornaria o processo eleitoral tão compreensível como a escolha do prefeito. Seria mais fácil vigiar sua atuação, cobrar seu trabalho. O custo de campanha, reduzida a um distrito seria muito menor, assim como a corrupção. A figura do Suplente seria eliminada.
Para que esse primeiro passo seja dado, os autores criaram o site Ranking dos políticos, com os nomes e notas de todos os deputados.
Desmontar o arcabouço da gestão pública e criar um Estado eficiente é tarefa demorada e difícil. As reformas propostas devem provocar acalorados debates, como diz Antonio Ermirio de Moraes no prefácio. E são muitos, naturalmente, os pontos discutíveis. Alguns exemplos:
Logo nas primeiras páginas citações de Reagan e Ayn Rand causam estranheza como um anacronismo. Esses dois já tiveram seu reinado e ainda têm adeptos poderosos no Tea Party americano, mas se a crise atual não foi suficiente para mostrar que o tipo de capitalismo que eles apregoam não funciona, e moralmente é um retrocesso, vale a pena ver o documentário: Frontline: The Warning (tem no Netflix) em que Alan Greenspan, talvez o mais famoso randiano, que aplicou fielmente sua teoria durante as quase duas décadas em que reinou no Federal Reserve, declara, diante do Congresso e das câmeras, que estava errado na sua ideologia. Saiu "belo e fagueiro", deixando atrás de si o desastre.
Apesar dos gurus que o inspiram, o livro prevê a manutenção de instrumentos de controle do mercado: o CADE (Conselho de Administração de Defesa Econômica); agências reguladoras, como Anatel, que teriam recursos e atuação ampliados; e uma novidade: a criação de uma Agência Nacional Anticorrupção que, acima de tudo, fosse independente do governo do momento.
Outro ponto questionável. Na página 42 lê-se: Se uma pessoa perder o emprego, passará dificuldades e perderá benefícios. No entanto, quando se fala de toda uma sociedade, o que importa não é quantos empregos existem e sim a qualidade e produção total. Quanto mais produtivo for o trabalho, maior será o bem-estar geral.
Sob o ponto de vista empresarial não há o que discutir. Mas um país não é uma S/A. A prioridade de uma nação não é dar lucro. É criar condições para que seu povo viva em segurança e tenha oportunidade de desenvolver seu potencial, seja qual for. Produção e riqueza seriam um meio para se chegar a uma sociedade desenvolvida cujos beneficios alcancem a todos, não um fim em si.
A proposta de reforma das Forças Armadas também dá o que pensar: Reduzir fortemente o contingente. Concentrar recursos em vigilância eletrônica de fronteiras.
E o que acontecerá se nossos vizinhos ou países mais distantes invadirem nosso território? Sob a alegação de combate ao tráfico de drogas, por exemplo, corremos o risco de ter tropas estrangeiras instaladas no País. Até porque teremos liberado as drogas - outra proposta discutível do livro - mas os outros países, não. Para o bem e para o mal, somos um país muito grande e muito rico e a Amazonia (inclusive pela água, bem mais precioso que petróleo) especialmente, está sob os radares das nações poderosas.
Outro ainda: Não é papel do Estado criar empregos. Mas nos momentos de crise, sejam inundações, grandes secas, fracasso de safras, sejam estrepolias do mercado, problemas internacionais, quem é chamado a interferir? O Estado. Foi o New Deal que, criando empregos tirou os EUA da grande depressão; e na crise atual, foi ao governo que correram para apagar o fogo, pagar a conta e agir para criar empregos e vencer a recessão. Talvez o Estado não devesse ter esse papel. Mas, na prática, é o que acontece. Já o mercado, a iniciativa privada não tem compromissos com a nação. Tem compromissos com o lucro e seus acionistas. São alguns exemplos das questões que a leitura suscita.
***
Nos Estados Unidos, o chamado capitalismo americano também anda sob intenso escrutínio. Há uma avalanche de títulos examinando o assunto sob todos os ângulos e ideologias. Um deles é "O preço da Desigualdade" de Joseph E. Stiglitz, prêmio Nobel, professor da Universidade de Columbia. Ele e alguns outros autores de peso têm desafiado a ortodoxia econômica dominante, tanto o laissez-faire capitalista (Tea Party, Ayn Rand) como o pensamento democrata neoliberal.
Stiglitz diz que o mercado livre e competitivo é altamente benéfico para a sociedade em termos gerais mas precisa ser regulamentado e supervisionado pelo governo para funcionar a longo prazo.Os conservadores defendem o mercado livre esquecendo o quanto o poder econômico concentrado se transforma em poder político.
Se não houver limites, os ricos usam do poder para ganhar vantagens às expensas da maioria, garantindo para si tratamento favorável em impostos, mercados protegidos pelo governo e outras formas de rent seeking.
A desigualdade não apenas viola valores éticos como leva a um crescimento mais baixo e menor eficiência.
Os Estados Unidos não são mais um país com justiça para todos mas um país que favorece os ricos e concede justiça aos que podem pagar. Isso ficou muito evidente na crise de agora, quando os grandes bancos acreditaram que eram grandes demais não só para quebrar como também para ser responsabilizados.
Concentração de poder em mãos privadas pode ser tão prejudicial ao funcionamento do mercado quanto o excesso de regulamentos e controle politico do Estado; são as ideias básicas defendidas em seu livro.
Qual deve ser o papel do Estado? Qual o limite entre o Estado- babá e o Estado autoritário? Como controlar a febre reguladora do Estado, preservando nossa liberdade e direitos básicos? Do outro lado, como controlar a ganância do mercado que visa ao lucro e à distribuição de dividendos, sem compromisso com o conjunto da nação?
Carregando o elefante tem o mérito de trazer o assunto à pauta, nesse momento de transição em que as doutrinas do século passado já cumpriram seu tempo, e o país que seremos depende de nós.
Marilia Mota Silva
Washington,
3/10/2012
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