COLUNAS
Quarta-feira,
26/9/2012
Cézanne: o mito do artista incompreendido
Humberto Pereira da Silva
+ de 11300 Acessos
Cézanne, As grandes banhistas, 1900, Óleo sobre tela, 127,2 x 196,1 cm, The National Gallery, Londres
Um catálogo com a lista de artistas idiossincráticos que tiveram suas obras rejeitadas e posteriormente foram reconhecidos como gênios não é pequena. Quando se trata, porém, de um artista cuja obra significa a ponte entre dois momentos da história da arte, sua rejeição inicial e posterior revalorização precisam ser consideradas com vagar. Esse é o caso de Paul Cézanne (1839-1906). Como ele, Vincent Van Gogh e Paul Gauguin igualmente tiveram trajetórias artísticas erráticas, conflituosas, escolhas excêntricas e, em decorrência, se prestam a debates sobre o quanto traços de caráter e temperamento determinam a obra. Mas é Cézanne que, nas palavras do historiador Giulio Carlo Argan, em seu referencial Arte Moderna, "conclui a parábola do impressionismo e forma o tronco do qual nascem as grandes correntes da primeira metade do século XX".
O mito do gênio solitário que, incompreendido, entra em conflito com sua época, se indispõe com companheiros de trilha e se torna não só inconteste como se serve de farol para os pósteros deixa, de fato, problema para apreciação de uma obra no calor dos acontecimentos: separar o que se deve valorizar - a partir de condicionantes do tempo - e os índices que indicariam sua sobrevivência e influência para além de seu próprio tempo. A importância de Cézanne, nesse sentido, está menos no reconhecimento posterior de sua genialidade - o que ocorreu igualmente com Van Gogh e Gauguin - do que nas contingências que exigiram uma reavaliação de sua obra. Bem entendido, o foco da reavaliação na sua concepção e maneira de pintar, o que o coloca na posição de mentor das novas tendências.
O valor de uma obra se intercala às contingências que determinam seu lugar na história. Mas, enquanto o valor é susceptível aos humores do tempo (o próprio Cézanne tinha dúvida quanto ao alcance de sua obra: ele não se via avançado em relação ao seu próprio tempo - seu maior desejo era o de ser exibido nos grandes museus e perfilar ao lado dos mestres do passado), seu lugar na história não. Afirmar que Cézanne forma o tronco das grandes correntes artísticas do século XX não é o mesmo que corrigir críticos e apreciadores que não deram o devido valor à sua obra no tempo em que foi concebida: o gabarito de que dispunham não era o mesmo daquele do início do século XX. Já a influência exercida pela obra de Cézanne é um dado reclamado por artistas como Pablo Picasso, e isso faz parte da história da arte tanto quanto o cubismo.
Óbvio que o valor estético de sua obra está atrelado a esse dado histórico. Malgrado, o gabarito que permite atribuição de valor estético não está imune a discordâncias (os critérios que os contemporâneos de Cézanne dispunham não eram os dos cubistas); tampouco o valor de uma obra em certo momento não implica, necessariamente, que ela venha a ser reconhecida posteriormente em virtude de sua ressonância. Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898) despontou antes dos impressionistas; não transitou, contudo, entre eles e terminou celebrado pelos defensores de um movimento à frente, o simbolismo. Em fim de carreira, agitou os meios artísticos e recebeu críticas elogiosas de Aubert Aurier (crítico de sensibilidade aguçada, arriscou e foi o primeiro a escrever sobre Van Gogh e Gauguin), mas hoje guarda lugar lateral na história da arte.
O caso Cézanne, com isso, exige que se separe valor da obra e influência. O ponto em pauta é: os contemporâneos de um artista podem se equivocar e não reconhecer genialidade em sua obra, tanto quanto atribuir valor que será ignorado ou destoar de critérios por vir. Puvis de Chavannes, assim como o simbolismo, é um bom exemplo do quanto na história da arte joga-se com o acaso. Por conta da contingência histórica, críticos e apreciadores jogam com indícios que especulam sobre a fortuna de uma obra. Com isso, questionar a falta de sensibilidade de quem não consegue enxergar os sinais criptografados numa obra é um profundo mal entendido. Do mesmo modo que num jogo de dados, uma obra como a de Cézanne (Puvis de Chavannes, o refletiria no espelho, portanto em posição invertida) se laça à própria sorte.
Obra lançada à própria sorte, para isso entra em jogo seu temperamento, suas escolhas e, por conseguinte, trajetória e frustrações artísticas. De fato, já em seu debut no convulsionado universo cultural parisiense, entre as décadas de 1860 e 1870, a presença de Cézanne é singular. Estimulado por Émile Zola, amigo de infância em Aix-en Provence, ele decide tentar a sorte em Paris, onde estabelece contato com Édouard Manet, Claude Monet, Camille Pissarro, August Renoir. Não obstante, ele não se ajusta ao ambiente parisiense, incomoda-se com o modo de vida afetado dos artistas, faz diversas tentativas de expor no Salão de Paris, mas é frequentemente recusado (em 1882 ocorreu sua única exibição no Salão, mas o quadro exibido o registra como aluno do paisagista Antoine Guillement, amigo de Pissarro).
Mesmo desajustado, Cézanne acompanha o impacto da recepção das obras de Manet, Le déjeuner sur l´herbe (1863) e Olympia (1865), expõe no Salão dos Recusados, criado sob Napoleão III, frequenta o Café Guerbois, ponto de encontro de artistas em rota de colisão com a arte acadêmica. Os encontros no Café Guerbois levam à criação do Grupo Batignolles, que se reunia para discutir a situação da pintura, mas a presença de Cézanne no grupo é marginal. Nesse período, ele nutre admiração por Manet, mas suas concepções artísticas não estão de acordo com o que propunham os artistas do Batignolles. Seus olhos estão voltados para o Louvre, o neoclassicismo de Nicolas Poussin, enquanto seus quadros guardam elementos românticos de Eugène Delacroix, que são equilibrados pela influência do realismo de Gustave Courbet.
Com dificuldades para se expressar e defender seus pontos de vista, sua pintura é objeto de leituras negativas, quando não de contundentes reações. Em 1867, numa exposição em Marselha, um de seus quadros precisou ser retirado diante da reação do público, que queria destruí-lo. Entre os que gravitam em torno do Batignolles, mesmo Zola, que nesses anos se dedica à crítica de arte na imprensa, onde defende os jovens artistas em confronto com as convenções, gradativamente se afasta de Cézanne e se torna refratário à sua obra. Sintomático desse afastamento é o fato de Zola reunir os artigos desse período e os publicar no livro Mon Salon; nele todos os novos pintores estavam representados com suas posições sobre o gosto do Salão: Monet, Manet, Corot, Pissarro; Cézanne, contudo, foi esquecido.
As divergências entre eles culminam em ruptura, com a publicação do romance A obra (1886), de Zola, no qual Cézanne se reconhece no personagem Claude Lantier, que é descrito como um artista convulsionado pela vida particular e por essa razão não foi capaz de terminar sua obra prima, enlouquecendo e suicidando-se. Deve-se considerar, contudo, que nesse momento o posicionamento de Zola não é mais entusiasta em relação aos artistas do Batignolles: A obra endereça sua crítica aos impressionistas como um todo; para Zola, o impressionismo não atingiu o fim a que se propusera: uma nova geração devia prosseguir. Assim, seu romance antecipa os novos caminhos que a pintura devia seguir para sair do beco sem saída do impressionismo. E esses novos caminhos estavam sendo trilhados por protagonistas como Puvis de Chavannes.
Passados os primeiros anos em Paris, a partir de 1871 o estilo de Cézanne se modifica em função principalmente do estreitamento de sua relação com Pissarro. Pinturas como A casa do enforcado (1873) anunciam uma maior aproximação com o impressionismo. Alguns quadros desse período foram apresentados na primeira exposição do grupo em 1874. Nessa exposição Cézanne recebeu duras críticas, motivadas pela apresentação de Uma Olympia moderna, com a qual homenageia Olympia, de Manet, e, ao mesmo tempo, radicaliza o discurso temático e estritamente pictórico do original. O affair com o impressionismo, no entanto, durou pouco. Seu afastamento do ideário impressionista se aguçou com um novo fracasso na terceira exposição do grupo em 1877.
Alvo de críticas e insultos, ele decide se afastar do mundo cultural parisiense. Manteve amizade apenas com Pissarro (circunstancialmente com Renoir e Monet). Nos anos seguintes, ele se refugia no seu próprio ato de pintar. Na maior parte do tempo trabalha em Aix e seus arredores. Distante do ambiente parisiense, Cézanne libera ao máximo sua capacidade expressiva. Não desejava que sua pintura refletisse mimeticamente, com precisão, a realidade que o rodeava. O que lhe importa é transmitir a estrutura profunda dos objetos, das pessoas e das coisas. Mesmo afastado, sua obra desperta tímido interesse: em 1892 George Lecomte e Émile Bernard lhe dedicam textos elogiosos; ele trava contato, ainda, com o marchand Ambroise Vollard, que realiza a primeira exposição dedicada à sua obra em 1895.
A recepção crítica da exposição, contudo, se inscreve no rol de suas frustrações. Zola destaca-se entre os críticos mais contundentes, pois o qualifica sem meias palavras como um grande pintor fracassado. Apenas alguns artistas, entre eles Matisse, reconhecem o valor de sua obra. Depois da exposição Cézanne leva a limites monásticos sua solidão, concentração na arte de criar e toma a arte como única fonte de regeneração vital: pinta, então, As grandes banhistas (1900). A chegada do novo século não se traduziu numa melhor compreensão de sua obra. Ao contrário, as críticas se sucedem e, sintomático do prestígio de que gozava, na ocasião da morte de Zola, em 1902, parte de sua coleção de obras de arte foi posta à venda - nela se incluíam várias telas, aquarelas e desenhos de seu amigo de juventude.
Solitário, nos últimos anos de vida Cézanne mantém rotina metódica, concentrado nos desafios de sua obra. Essa rotina foi quebrada só pelas presenças fugazes dos jovens pintores Maurice Denis e Émile Bernard, que apreciam suas pinturas e peregrinam até Aix para conhecê-lo. Mas no final da vida Cézanne é um homem ressentido, amargurado, com fortes dúvidas quanto ao que havia de fato realizado: especula se o crítico Joris Huysmans não teria razão em seu veredito: sua obra era resultado de uma patologia ótica. Sem o reconhecimento que esperava e cheio dúvidas, ainda que obcecado com a construção de uma pintura autônoma, capaz de se expressar por si mesma (obsessão esta que mereceu cuidadoso ensaio de Merleau-Ponty), Cézanne morreu sem a companhia de qualquer pessoa próxima.
Logo após a sua morte, O Salão de Outono lhe dedicou uma grande retrospectiva em 1907. Nenhuma novidade que essa retrospectiva se constituísse em novo fracasso, senão pelo fato de que foi acompanhada por Pablo Picasso - então já conhecido nos círculos parisienses como um dos artistas mais evidentes. Picasso conhecera Cézanne no ateliê de Matisse, ao ver uma de suas Banhistas, adquirida por Matisse pouco depois da exposição de Vollard. Mas a retrospectiva o tocou tão fortemente que dela notam-se marcas inequívocas das Banhistas na tela que estava pintando, Les demoiselles d´Avignon (1907), obra que anuncia o cubismo. Este quadro passou à história como a obra que revolucionou a história da arte. Seu geometrismo e suas deformações inauguram não só o cubismo, mas também, por extensão, a pintura moderna.
Estudiosos defendem que o movimento cubista foi uma revolução tão completa que os meios pelos quais as imagens podiam ser formalizadas na pintura se modificaram mais nos anos de 1907 a 1914 do que havia se modificado desde o Renascimento. Uma razão significativa para o rápido reconhecimento da revolução cubista encontra-se no destacado papel que tiveram os poetas-críticos, em especial André Salmon e Guillaume Apollinaire. Eles apoiaram integralmente o movimento, redigiram manifestos, panfletos e formularam explicações nas quais defendiam que o cubismo punha em xeque os pressupostos básicos estabelecidos pela arte acidental por muitos séculos. Para estes poetas-críticos, ainda, o reconhecimento de que Cézanne estabelece novas bases para a arte é inconteste.
Salmon assevera que ele deixou um método simples e prodigioso; com ele os cubistas aprenderam que alterar as colorações de um corpo é corromper-lhe a estrutura e que o estudo dos volumes primordiais (esfera, cone, cilindro) abre horizontes inaudíveis. Assim, sua obra é um bloco homogêneo que se move sob o olhar e prova que a pintura não é - ou já não o é para os cubistas - a arte de imitar um objeto por meio de linhas e cores, mas a de dar consciência plástica ao nosso instinto: quem compreende Cézanne, pressente o cubismo. Na mesma linha, Apollinaire, talvez o porta voz mais célebre do movimento, ao diferenciar o cubismo das velhas escolas de pintura, sustenta que aquele não é uma arte de imitação, mas de concepção, que tende a elevar-se às alturas da criação e que os últimos quadros e aquarelas de Cézanne pertencem ao cubismo.
Ao contrário de Albert Gleizes e Jean Metzinger, artistas ligados ao movimento, Picasso praticamente não expressou suas ideias sobre arte. Nas suas poucas e lacônicas declarações, contudo, manifesta o quanto sua arte deve à de Cézanne. Na visão de Picasso, o que conta não é o que artista faz, mas o que ele é. Em Cézanne o que lhe importa é a inquietação, a constante insatisfação que o leva a uma exigência criativa absolutamente incomum; com isso, aquilo que sua arte deixa como exemplo: um processo de criação que não se curva aos padrões estabelecidos. Na sinceridade com que encara os riscos e desafios da criação, o que de mais importante Cézanne o ensinou, o resto é falso. Numa espécie de homenagem ao "pai do cubismo", Picasso retratou o marchand Ambroise Vollard, ponto de ligação entre ambos, inspirado no de Cézanne.
Na apreciação de Cézanne pelos cubistas devem ser levados em conta três traços em especial: a profunda estruturação da realidade que o envolvia; sua tendência a geometrizar a realidade; e sua disposição em captar objetos a partir de pontos de vista heterodoxos em relação às leis da perspectiva tradicional. Essas características levam o crítico Roger Fry, no livro Vision and design, em 1920, a definir sua obra como a maior revolução na arte desde a utilização da perspectiva pelos renascentistas. Deve-se ressaltar que essas características jogam com as contingências que convergem para a revolução cubista. Apesar da relativamente pouca aceitação do público, o cubismo exerceu impressionante atração sobre o mundo artístico. Para ele acorreram futuristas, rayonistas, suprematistas, dadaístas e toda a arte construtivista.
No momento em que o cubismo impõe-se, a obra de Cézanne ganha relevância, passa a ser valorizada com critérios ausentes nos gabaritos de Zola ou Huysmans. O capricho do acaso histórico, então, é um dado que não se deve subestimar. Nele, a reavaliação de Cézanne tanto quanto um lance de atenção para o lugar comum a respeito das peculiaridades do mito do artista incompreendido que, depois, é tomado por gênio. Na contramão de seu tempo, como tantos artistas que circularam nos cabarés e cafés de Montmartre em fins do XIX, Cézanne correu risco de ser esquecido e sua obra se perder inexoravelmente nas brumas do passado. O valor atribuído por Aurier a Puvis de Chavannes foi corroído pelo tempo; o mesmo podia ter ocorrido com os tímidos e circunstanciais elogios de Émile Bernard.
Com isso, acentua-se como a reavaliação de sua obra está presa às contingências históricas. No movimento da história, a importância e valorização posterior de Cézanne devem-se a acolhida e subsequente repercussão da revolução cubista. Do ponto de vista do mito do artista incompreendido, esse não é o caso de Van Gogh ou Gauguin, com os quais se podem traçar paralelos. Para estes, a reavaliação de suas obras pelos pósteros não foi condicionada pelos rumos que as manifestações artísticas tomaram no século XX: apreciados pelos cubistas, não ressoam com a intensidade de Cézanne, não guardam a mesma importância nos rumos da história da arte. Em contraste, portanto, a incompreensão de Cézanne revela o quanto se deve ver com vagar o que seria mais um caso na lista de artistas excêntricos e incompreendidos.
Picasso, Les demoiselles d´Avignon, 1907, Óleo sobre tela, 243,9 x 233,7 cm, The Museum of Modern Art, Nova York
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
26/9/2012
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Corot em exposição de Jardel Dias Cavalcanti
02.
Steven Spielberg de Maurício Dias
Mais Acessadas de Humberto Pereira da Silva
em 2012
01.
Cézanne: o mito do artista incompreendido - 26/9/2012
02.
'O sal da terra': um filme à margem - 27/6/2012
03.
Paulo César Saraceni (1933-2012) - 25/4/2012
04.
Herzog, Glauber e 'Cobra Verde' - 18/4/2012
05.
A Nouvelle Vague e Godard - 15/2/2012
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|