COLUNAS
Quinta-feira,
4/10/2012
Liberdade de crença e descrença
Carla Ceres
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Assistir ao trailer de A inocência dos muçulmanos, de Sam Bacile, suposto pseudônimo do produtor Nakoula Basseley Nakoula, foi um desprazer suportável apenas para compreender melhor a causa dos violentos protestos que o filme gerou no mundo islâmico. A obra, a despeito de sua péssima qualidade, atingiu o objetivo de ofender milhões de pessoas, difamando o profeta Maomé.
Para os brasileiros fica difícil compreender como uma sátira tão ruim pôde dar origem a tamanha comoção. Ainda mais se levarmos em conta que muitos manifestantes nem ao menos assistiram a ela. Estamos acostumados a fazer piada a respeito de tudo e vivemos em uma democracia onde os principais cerceamentos à liberdade de expressão assumem a forma de autocensura ou "bom senso" por temor a um possível ciberlinchamento por grupos de opiniões contrárias. Dizemos o que nos dá na cabeça, sobre qualquer tema ou pessoa, mas fazemos isso no lugar certo.
Surpreende-nos bastante ver os muçulmanos direcionarem sua indignação ao governo dos Estados Unidos, que - desconsiderando-se teorias conspiratórias - não teve qualquer responsabilidade pelo filme. Sim, há grupos islâmicos interessados nessa revolta mal direcionada. No entanto eles só conseguem manipular as massas porque a ideia de que um governo não possa simplesmente calar os cidadãos parece absurda para quem vive sob regimes ditatoriais. Além disso, ao contrário de certos milionários árabes, que fazem fortuna negociando amistosamente com os norte-americanos, os pobres do mundo árabe têm poucos motivos para amar esses invasores infiéis.
Embora pareça uma piada mal feita, o vídeo é pior que isso. Nakoula Basseley Nakoula trabalhou movido pelo ódio e desconsiderou o risco ao qual expôs os atores quando adulterou suas falas, transformando um reles "filme de aventura no deserto" em um amontoado de insultos. Felizmente, o ministro paquistanês das ferrovias, que ofereceu uma recompensa de cem mil dólares pela morte de Nakoula, não quis montar um pacote vingança incluindo o elenco.
No Brasil também tivemos nossa manifestação pelo respeito religioso. Manifestação pacífica e ecumênica reunindo muçulmanos, cristãos de todos os tipos, espíritas e talvez até alguns ateus favoráveis à liberdade religiosa, que inclui não apenas o direito de seguir as próprias crenças religiosas, como também o de optar pelo agnosticismo e o ateísmo.
Embora aos poucos, o ateísmo é uma "religião" que vem se expandindo pelo mundo e também tem suas facções fundamentalistas e fanáticas, dedicadas a converter os crentes custe o que custar. O proselitismo presente na maioria das religiões contaminou alguns ateus, que empurram argumentos antirreligiosos goela abaixo de quem talvez não esteja em condições de comungar com a descrença naquele momento.
Acontece que existe um ateísmo simplista, para iniciantes, que denuncia as religiões como mentiras e os profetas como farsantes nem sempre bem intencionados. Seus argumentos são muito bons. Podemos encontrá-los, por exemplo, no filme The invention of lying, que saiu no Brasil como O primeiro mentiroso e, em Portugal, como A Invenção da mentira. Vale a pena assistir. É uma comédia excepcional. Dá o que pensar sem levar sua alma pro inferno tedioso da doutrinação antirreligiosa.
Aprimorando esse ateísmo para consumo popular, existe algo que chamo de ateísmo esclarecido. Este aborda a questão da existência de Deus e da idoneidade de seus profetas a partir de um ponto de vista científico. Reconhece a experiência mística como uma realidade subjetiva, marcante e transformadora, que pode ocorrer a algumas pessoas. Talvez até a você.
Se excluirmos as experiências místicas da equação, talvez os inúmeros profetas e místicos, que surgem de vez em quando em todos os cantos do mundo, sejam mesmo apenas farsantes bem intencionados ou sedentos por poder. Porém essa experiência existe. Pode até ser provocada em laboratório e estudada com a ajuda de tomógrafos. Certas religiões costumam buscá-la através de drogas, meditação, jejum, yoga...
Um dos mais comoventes depoimentos sobre o assunto é o da neurocientista Jill Taylor, que passou pela experiência durante um derrame. Muitas outras pessoas sofreram profundas transformações pessoais e tentaram transmitir à humanidade mensagens de amor em um mundo melhor. Alguns talvez sejam os profetas de várias religiões. No entanto, nenhuma experiência mística torna um profeta perfeito. Eles são pessoas do tempo e da sociedade em que vivem. Fazem o melhor possível, mas também oscilam e cometem erros.
Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/
Carla Ceres
Piracicaba,
4/10/2012
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