COLUNAS
Quarta-feira,
26/12/2012
As maravilhas do mundo que não terminam
Marilia Mota Silva
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"Empédocles diz:.....és louco, existe alguma parte onde dorme e se detém o espírito sagrado da vida para que tu possas atá-lo, a ele que é puro?
Sempre na alegria nunca o enxergarás, ele não é de prisões onde o verias a se roer de angústia nem se demora sem esperança no mesmo lugar. Queres saber para onde vai? Deves atravessar as maravilhas do mundo que não terminam."
(In A Morte de Empédocles, 1a Versão-Quinta Cena, 2o ato, Hölderlin 1990 - Tradução de Alex Weinberg))
É virose. Quando os médicos não sabem o que fazer com os sintomas que não se encaixam em nenhum diagnóstico, dizem que é virose, que deve passar em dois ou três dias. Em geral dá certo e o paciente sobrevive. Sistema nervoso, estresse, doença autoimune são variações do mesmo recurso; funcionam como guarda-chuva sob o qual se abrigam males mal conhecidos e para os quais não há remédio ainda . Não é falta dos profissionais da saúde. É que a despeito do extraordinário impulso que os avanços tecnológicos deram às pesquisas no campo da medicina, o conhecimento sobre nós é bastante limitado. Há divergências até sobre questões básicas como alimentação e exercícios físicos: o que é recomendado hoje pode ser condenado amanhã.
Esse descompasso se agrava quando se trata do funcionamento de nossa mente. É como se habitássemos dois mundos. De um lado, trabalho, diversão, compras, pesquisas, filmes, fotografia, todo o tipo de negócios, vida social e amorosa ou arremedo disso, somos nós e as telas. Do outro lado, uma parte nossa que ficou perdida, esperando alguma coisa, a vida, seja lá o que for isso. Essa desarmonia cria um cisma, pede um reajuste.
Tem sido sempre assim. A história mostra que primeiro surge a ferramenta para atender a uma necessidade humana: a flecha, o machado, a roda; o uso dessa ferramenta estimula a imaginação e leva a novas conquistas. A invenção da imprensa deu impulso ao Renascimento. A pílula deu à mulher algum controle sobre seu corpo, com as consequências que temos visto. Uma coisa leva à outra e, aos trancos e barrancos, vamos nos adaptando às mudanças. Acrescentam-se sinapses e neurônios ao cérebro original que dividimos com os primatas; ampliam-se horizontes, valores, visão do mundo. É um dos aspectos que torna infinitamente estimulante a aventura da vida, o ser (mos) em construção.
O desenvolvimento tecnológico de agora mudou nossos caminhos de maneira irreversível. Fez uma revolução silenciosa, profunda e pacífica e nos uniu a todos, ignorando fronteiras, diferença de idiomas, interesses políticos. Tornou a informação livre e a comunicação possível de um ponto a outro do planeta. E tudo indica que é apenas o começo - o quantum, os qubits sugerem dimensões impensáveis até há pouco tempo. Os limites entre o real e a ficção se confundem. Nem Nostradamus previu isso. Difícil imaginar como estaremos daqui a meros cinco anos.
No entanto, nós mesmos continuamos no passado. Fundamentalismos proliferam, crenças e costumes primitivos ainda predominam; qualquer retórica nos inflama, qualquer discurso e doutrinação, por mais atrapalhados, encontram defensores furibundos. Ninguém escapa. Em versão suave, "civilizada", somos românticos: "Siga seu coração! Deixe que ele o guie", dizemos em momentos de decisão difícil, mesmo sabendo que não importa onde pulse - na mente, no peito ou abaixo da linha da cintura - o coração não é bom conselheiro. Pascal disse há séculos a frase que ficou famosa: O coração tem razões que a própria razão desconhece. Não devemos confiar em suas decisões. No quê então? Nossa memória é outro banco de dados que nos guia ao longo da vida e que também não merece muita confiança: editamos, apagamos, recriamos lembranças em nosso benefício ou das paixões que nos movem. Nossa percepção do outro, de seu estado emocional ou mental parte de assunções quase sempre equivocadas; raramente damos atenção ao que se passa em nós, às nossas emoções, às razões por trás de atos.
Vivemos às cegas. Somos figurantes em um filme cujo roteiro desconhecemos. Sem orientação e modelos de comportamento nos perdemos. A maior parte do que pensamos está abaixo do nível da consciência e da linguagem; vem de medos primitivos que trazemos do berço, de preconceitos, valores, atitudes adquiridas sem que nos déssemos conta. Somos movidos a ciúme, egoísmo, competição, vaidade; e desejo, compaixão, solidariedade. Existe algo essencial em nós? Um cerne, um eu? Muitas vezes não nos reconhecemos no diário ou carta antiga, ou mesmo na paixão que era tudo, há poucos anos, e agora não é nada; o amor de Swann. Somos todos assim, toda a humanidade: uma das maravilhas do mundo, e frágeis. Aceitar quem somos deve nos libertar de algumas amarras. E assim, quem sabe descobrimos onde se esconde o sagrado espirito da vida?
Marilia Mota Silva
Rio de Janeiro,
26/12/2012
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