COLUNAS
Segunda-feira,
31/12/2012
Expurgo, de Sofi Oksanen
Ricardo de Mattos
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"Nem mesmo um cachorro pode mastigar a corrente da hereditariedade" (Sofi Oksanen).
O que sabemos a respeito do pequeno país europeu nomeado Estônia? Que é um país cuja independência finalmente veio em 1992, quando mais nenhuma potestade reivindicou poder sobre ele, seja poder territorial, seja o poder necessário para impor uma ideologia. Que é um país cujo território está definido numa área disputada ao longo dos séculos, onde os nativos precisaram ser teimosos para manterem-se contra tudo e contra todos e, ainda assim, desenvolverem um sentimento nacionalista que fortalecesse e permitisse-lhes pensar na independência.
De fato, em sua história mais remota, a Estônia foi disputada por dinamarqueses, suecos, alemães, russos e pelo poder papal. No século XII, foi alvo de uma cruzada planejada e promovida pelo Papa Celestino III (1106-1198), fundamentada na necessidade de combater hereges. Acossada entre 1208 e 1227 por esta investida pontifícia, precisou defender-se concomitantemente ao norte contra a invasão da Dinamarca. Apesar da resistência, os estonianos perderam e seus territórios foram divididos em bispados. Tanto se esforçou Roma que os estonianos aderiram ao luteranismo e hoje são um dos povos menos religiosos do mundo. Assim, deu-se a sequência de invasão, divisão e reunificação que parece ser o contorno geral de sua história. Conforme a ordem dominante perdia força e prestígio, outra se apresentava para reivindicar o espólio. Exemplo disto, à Ordem Teutônica - associação análoga à dos Templários - sucedeu o principado de Moscou.
No começo do século XX houve uma primeira tentativa de independência estoniana. Foi em 1918. Contudo, Roma, Suécia e Dinamarca foram apenas substituídas por Rússia e Alemanha. Si real ou virtualmente dotada de autonomia política, a Estônia acabou compondo a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Apenas em 1992 a Estônia pôde dizer-se livre. O que não significa um desembaraço total, pois, si a Natureza não dá saltos, que dizer de situações nas quais estão envolvidos interesses diversos, mormente interesses econômicos.
Estônia Fonte: davybarreto.com
Diante de tal instabilidade, não se poderia esperar grande desenvolvimento literário. Não se trata de crítica, mas de compadecimento. Oito poetas de biografia escassa e obra inacessível compõem o quadro estoniano: Villem Gunthal-Ridala, Jaan Kaplinski, Lydia Koidula, Kalyu Lepik, Juhan Liiv, Karl Ristikivi, Gustav Suits e Marie Under. Um estudioso local poderá espernear e aumentar a lista. Observamos que localizar os mais famosos já foi inusitado, que dizer daqueles de expressão restrita. Dentre eles, o mais famoso é Juhan Liiv, por nomear o mais importante prêmio literário nacional. O número de escritores importantes não parece muito maior. Nas histórias destes poetas, e de outros poucos escritores encontrados, reflete-se a história do país: nacionalismo na busca e valorização de suas origens, patriotismo, preocupação humanística, perseguição política, exílio. As obras do escritor August Annist e do poeta Suits tiveram estreita ligação com o fogo.
Reputamos a esta falta de fôlego da literatura nacional o fato da mais importante obra de ficção envolvendo a Estônia ter sido escrita por uma finlandesa. Referimo-nos a Sofi Oksanen, escritora que numa só obra conseguiu projetar seu talento para o mundo e, de quebra, evidenciar a importância da escrita em aproximar realidades geograficamente distantes mas semelhantes em diversos aspectos.
Segundo os dados constantes de seu site pessoal, Oksanen nasceu em 1977, na Finlândia, na cidade com o impronunciável nome de Jyväskylä. Até o momento é autora de cinco livros: Stalin's Cows, de 2003; Baby Jane, de 2005; Purge - Expurgo -, de 2008; Too Short Skrit - Tales from the Kitchen, de 2011; e When the Doves Disappeared, de 2012, em vias de ser lançada no Brasil. Antes de passar a escrever em tempo integral, Oksanen foi estudante de dramaturgia na Academia de Teatro de Helsinki. A primeira versão de Expurgo, seu principal romance, foi uma peça encenada pela primeira vez no Teatro Nacional Finlandês em sete de fevereiro de 2007. A mais recente adaptação é para o cinema, sendo que já há fumos de indicação para o "Oscar" na categoria de melhor filme estrangeiro.
De acordo com o dicionário Houaiss, "expurgo" é o ato ou o efeito de "expurgar". Este verbo, por sua vez, significa "deixar puro, limpo, purificar (...) deixar livre (...) ficar sem erros, corrigir-se". O competente e injustamente menos lembrado dicionário de Pasquale acrescenta: "tornar imune". Limpar e impedir que suje: "Vá e não peque mais".
Teatro Nacional Finlandês
Há duas personagens principais: Aliide Truu e Zara. A primeira é idosa, ressentida, magoada e colaboracionista quando da ocupação da Estônia pelos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial. A segunda, jovem presa das ofertas sedutoras de vida fácil e rica, alcançável sem trabalho ou esforço. Avaliando a narrativa, o expurgo foi "benefício" concedido a ambas, uma oportunidade de reajustarem prioridades e apaziguarem-se com seus fantasmas. Si no primeiro momento Aliide sacrificou os de seu sangue em favor dos invasores, no segundo momento fez o que seria esperado.
O que tornou Aliide "impura", "suja"? Sua vida foi reunião de frustrações e preterições. Todas as atenções voltavam-se para sua irmã, tida como mais bonita e hábil nos afazeres típicos de uma mulher do campo. O homem que escolheu para si, viu-o casar-se com ela. O incentivo de seus familiares ao casamento com um militar alemão não apenas a fez sentir-se mais rejeitada que encorajada como criou-lhe problemas por ocasião da ocupação soviética. Quando a Alemanha foi expulsa e os soviéticos chegaram, precisou lidar com as suspeitas destes sobre eventual colaboracionismo. A abertura de arquivos e o estudo e publicação de documentos mostram que os soviéticos, sob a batuta de Stálin, não representaram exatamente o papel de mocinhos. Como estoniana, Aliide nada queria com um alemão. Trocados os invasores, casou-se por estratégia com um russo, o que lhe garantiu proteção. Com a proteção, todavia, granjeou também a rejeição generalizada de seu povo, rejeição que a acompanhou até a velhice.
Em Expurgo, o colaboracionismo de Aliide foi ao mesmo tempo um estratagema para livrar-se de novas agressões, um instrumento de vingança e uma forma de manter junto a si o homem amado. Uma faca pode cortar a mão inábil, mas pode-se aprender a manuseá-la com destreza e utilizá-la para o ataque. Socialmente, medidas extremas podem ser antipáticas, mas para quem não se preocupava com a reação social, a opinião das pessoas foi inócua. Pessoalmente, a avaliação dos próprios atos promovida pelo tempo pode ser um incômodo semelhante à mosca que, volta e meia, vinha atormentá-la. Tenha ela desejado ou não uma oportunidade para acertar as contas, esta oportunidade veio através de Zara.
Talvez pareça relativamente óbvio o curso que a trama seguirá, bem como as ligações reveladas entre as personagens. Não as mencionamos aqui, pois desejamos que o leitor desfrute de ótima leitura, ainda que em alguns momentos demasiado crua. Que não havia notável diferença entre nazistas e soviéticos e que Hitler e Stálin eram farinha do mesmo saco, isto nós sabemos hoje. Que o aliciamento de jovens com a promessa de sucesso nas passarelas pode ser, em muitos casos, o encaminhamento para a prostituição, é um alerta ao qual não atentam apenas estas mulheres que abdicam da maternidade em favor do conforto pessoal mediante a entrega das filhas a rufiões. O horror encontra-se nos fatos, não na referência a eles, bem o sabemos. Oksanen desenvolve o enredo de maneira a prender a atenção pelas quase 350 páginas bem escritas.
Ricardo de Mattos
Taubaté,
31/12/2012
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