COLUNAS
Terça-feira,
6/11/2012
Elesbão: escravo, enforcado, esquartejado
Jardel Dias Cavalcanti
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"O assassinato é a forma extrema de censura". (George Bernard Shaw)
Na cidade de Campinas, no dia 9 de novembro de 1835, a população começou a chegar cedo ao Largo de Santa Cruz (praça XV de Novembro), que posteriormente ficou conhecida como o Largo da Forca, para assistir a uma das mais severas punições já cometidas contra um escravo: ali seria enforcado e esquartejado (tendo a cabeça degolada e as mãos decepadas) o escravo Elesbão.
O cenário para a pena de Elesbão havia sido preparado dias antes, constando do patíbulo onde o mesmo seria enforcado e de mais dois postes, com um ferrão na ponta, onde seriam espetadas as mãos. Para o esquartejamento, realizado ali mesmo ao pé da forca, foi providenciado um objeto cortante, comprado de um ferreiro da cidade, que seria provavelmente um facão, com grossura e tamanho suficientes para decepar a cabeça e as mãos.
Elesbão havia sido condenado por ter assassinado, no dia 20 de maio de 1831, o seu senhor, chamado Luiz José de Oliveira. À sentença de condenação de Elesbão, foi acrescentado pelo juiz os seguintes termos:
Adendo a sentença acima, declaro que depois do réu sofrer a pena de morte cortar-se-ão as mãos e a cabeça, esta será remetida para a Vila de Jundiaí, e ali colocada num poste em lugar público e aquela serão colocadas nesta Vila em um poste e também em lugar público.
A cabeça de Elesbão seria, então, enviada para Jundiaí com o objetivo claro de exemplaridade de punição a possíveis revoltosos e as mãos, também com objetivo semelhante, ficariam expostas em Campinas, presas aos postes ao lado da forca.
Acabava ali a vida de um homem. No entanto, gritava e continua gritando o desejo da revolta.
Uma época que escraviza e mata seres humanos deve, antes de tudo, ser entendida. Mas, logo após, esta mesma época deve também ser julgada pelos crimes que cometeu.
Nós sabemos qual o peso político com o qual é tratado, dentro das reflexões historiográficas e fora delas, como no âmbito da política internacional, as questões acerca do práticas como a do Nazismo. Tribunais internacionais julgam o passado nazista com total empenho, buscando punir não só a história, mas todos os envolvidos, traçando linhas de entendimento e repudio as suas práticas racistas e criminosas à luz de uma ação política efetiva.
No entanto, no que diz respeito a uma parte fundamental de nossa história, que é a escravidão brasileira, esta é tratada com os panos quentes da objetividade da pesquisa histórica, anulando, dessa forma, uma intervenção política dentro e fora dos quadros historiográficos.
A despolitização nos dá a medida da idéia da desresponsabilidade generalizada no âmbito das ciências humanas (que parecem não precisar mais pensar e intervir no seu próprio tempo), que vêm perdendo seu papel de despertadoras e esclarecedoras da consciência coletiva. Contra esta esterilidade política devemos resgatar o papel histórico fundamental das ciências humanas que "foi o da crítica da ordem estabelecida, da denúncia dos privilégios abusivos e das dominações ilegítimas" (Hilton Japiassu).
É necessário rever esta postura, o mais rápido possível, para que se faça justiça não apenas em relação ao passado da raça negra, mas em função da preservação da dignidade do presente das pessoas que se vinculam à história desse passado. Não há presente, nem haverá futuro, para quem não se libertar das forças opressivas do passado que ainda continuam agindo entre nós.
Elesbão viveu em uma época na qual a escravização, o emprego da tortura e do assassinato para a preservação de privilégios político-econômicos estava amplamente estabelecido. Outros poderes se estabeleceram entre nós, maquiados, mas mantendo sua força antidemocrática.
Um programa de terror foi racionalmente arquitetado ao se matar Elesbão. Uma parte da história dos negros sangrou até a morte. Quem vai pagar por esse crime? Quem vai redimir esta vida e a de todos que a ela se ligam?
Elesbão no contexto da escravidão
No seu livro O Escravismo Colonial, Jacob Gorender chama a atenção para o fato de que o interesse pela interpretação de nossa história da escravidão estar presa a elementos que não são o próprio escravo. Ou seja, diz o autor, "o escravo, está claro, sempre figurou no quadro geral, mas explicado e não explicando. Como se devesse ocupar na hierarquia teórica o mesmo lugar subordinado que ocupara na hierarquia social objetiva".
É contra esta tendência historiográfica que se deve insurgir. O nosso propósito é dar voz explicativa a um fato histórico, o assassinato de Elesbão, à luz de uma percepção da própria condição a que se encontrava nosso personagem, ou seja, à luz do que era a sua realidade e ao desdobramento que o mesmo decidiu dar à sua própria existência.
Para tanto, é necessário entender um pouco as características da escravidão e a situação dos escravos dento do quadro desta prática no contexto brasileiro.
O tráfico mercantilista praticado pelos portugueses encontrou na África um imenso viveiro de força de trabalho para abastecer as suas colônias. Os africanos chegaram ao Brasil depois de arrancados à força de seu meio social originário. Aqui foram escravizados e colocados juntos para trabalharem em fazendas, não se respeitando suas diferenças étnicas (que marcavam diferenças do ponto de vista da língua, das tradições, costumes e evolução social).
Segundo David Brion Davis, "o escravo possui três características definidoras: sua pessoa é a propriedade de outro homem, sua vontade está sujeita à autoridade do seu dono e seu trabalho ou serviços são obtidos através da coerção".
Segundo esta definição, que explica claramente qual a realidade da prática escravista no Brasil, à existência do escravo não é dado nenhum sentido humano, ao contrário, a sua condição é a de ser apenas uma propriedade de outro ser humano. E a noção de propriedade traz implícita a idéia de sujeição total a alguém, no caso, ao senhor a quem pertence.
Segundo Montesquieu, na sua obra O Espírito das Leis, "a escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem completamente dependente de outro, que é o senhor absoluto de sua vida e de seus bens".
Segundo Gorender, "ser propriedade (com seu correlativo da sujeição pessoal) constitui o atributo primário do ser escravo. Deste atributo primário decorrem dois atributos derivados: o da perpetuidade e da hereditariedade. O escravo o é por toda a vida e sua condição social se transmite aos filhos".
Por isso, a institucionalização da escravidão produz a tendência dos senhores de escravos a vê-los como animais de trabalho. Não é à toa a existência da prática de marcar a carne dos escravos com ferro em brasa, tal qual se fazia com os gados, com as iniciais do nome e sobrenome dos proprietários.
O escravo é propriedade, mas possui corpo, aptidões intelectuais, subjetividade - é, em suma, um ser humano. A grande questão que se coloca é: perderá ele suas características humanas ao se tornar propriedade?
Há uma contradição inerente entre ser coisa e ser humano ao qual não se pode fugir. A legitimação da instituição servil, que tenta conciliar coisa e pessoa, é dissolvida por Elesbão ao exteriorizar sua oposição deste antagonismo reagindo ao tratamento de coisa.
Para escapar de sua condição de coisa o escravo só tinha uma saída: o ato criminoso. "O primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra o senhor à fuga do cativeiro".
Mas a pena era dura: além de incluí-los no direito das coisas, eram submetidos à legislação penal. As penas eram pesadas, como o caso da punição com mutilações, que estavam previstas pelo Código Filipino português.
As Ordenações Filipinas, livro quinto, tit. 41, dizia: "Mandava açoitar e cortar uma das mãos do escravo que arrancasse arma contra o senhor sem chegar a feri-lo; se o matasse, ou ao seu filho, a pena era tríplice: o escravo tinha decepadas ambas as mãos, as carnes apertadas com tenaz ardente e morria na forca".
A idéia de reunir trabalho e punição tem origens já no livro bíblico Eclesiastes, que diz: "Ao escravo, pão, correção e trabalho" (32,25) e, ainda recomenda o livro bíblico, "ao escravo malévolo, tortura e ferros" (33,28). A ênfase no castigo aos negros encontra semelhante prática na frase dos colonizadores portugueses: "quem quiser tirar proveito dos seus negros, há que mantê-los, fazê-los trabalhar bem e surrá-los melhor; sem isso não se consegue serviço nem vantagem alguma".
Segundo Gorender, "trabalho e castigo são termos indissociáveis no sistema escravista. O escravo é inimigo visceral do trabalho, uma vez que neste se manifesta totalmente sua condição unilateral de coisa apropriada, de instrumento animado. A reação ao trabalho é a reação da humanidade do escravo à coisificação. O escravo exterioriza sua revolta mais embrionária e indefinida na resistência passiva ao trabalho para o senhor. O que, ao olhos deste último, parece como vício ou indolência inata. Daí se tornarem indispensáveis a ameaça permanente do castigo e sua execução exemplar, conforme o arbítrio do senhor. Uma característica dos regimes escravistas, sem exceções nacionais, é que conferem ao senhor o direito privado de castigar fisicamente o escravo."
Do ponto de vista do escravocrata não só é necessário como justo associar trabalho e castigo corporal. As punições mais cruéis, como a de Elesbão, tinham como finalidade exemplificadora a aterrorização da massa escrava.
As reações dos escravos eram desde a resistência passiva ao trabalho até as fugas e inssurreições.
Se havia moderação no tratamento dos castigos aos escravos, esta baseava-se mais nas exigências da economia escravista do que do temperamento do senhor, afinal, inutilizar escravos era perder dinheiro. E como esquecer que no Brasil colônia a propriedade servil dava a medida da força econômica, posicionava o indivíduo na estrutura de classes e indicava seu status.
No sistema escravista o trabalho não dignifica o ser humano, ao contrário, avilta sua existência. Segundo ainda Gorender: "No escravismo a oposição do trabalhador ao explorador se manifesta, mais do que em qualquer outro modo de produção, sob o aspecto da oposição ao próprio trabalho. (...) O escravo só conquistava a consciência de si mesmo como ser humano ao repelir o trabalho, o que constituía sua manifestação mais espontânea de repulsa ao senhor e ao estado da escravidão."
As idéias expostas acima nos ajudam a entender a situação aviltante que Elesbão vivia: sob a força do trabalho imposto e do ferro na pele. No entanto, ele ousou se revoltar para tornar-se livre, mesmo que o preço dessa revolta fosse a morte fatal.
Parafraseando Walter Benjamim, retomar a história dos vencidos é saber que os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se eles continuarem vitoriosos. E como sabemos, os inimigos ainda não deixaram de vencer.
Nota: A ilustação do texto, a aquarela "Elesbão", é obra do artista Egas Francisco.
Para ir além:
José Roberto do Amaral Lapa. A Cidade, os Cantos e os Antros: Campinas 1850-1900. São Paulo: Edusp, 1996.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
6/11/2012
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