COLUNAS
Terça-feira,
8/1/2013
A Vida Acontece; ou: A Primeira Vista
Duanne Ribeiro
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A Primeira Vista é uma peça que trata das - como se diz? - coisas da vida. É engraçada, tocante, superficial, com um diálogo divertido e ágil bem tocado pelas atrizes Adriana Lima e Drica Moraes, que protagonizam o enredo. Desconhecidas que se encontram por acaso e se aproximam por mal-entendidos, amantes de uma noite, amigas de longa época, desafetos pelas circunstâncias mas só fragilmente, porque alguma coisa permanece... acompanhamos essa aventura cotidiana e comum, e nós identificamos às vezes, pois há muito de nós no que é comum e cotidiano. Além da sensibilidade e da empatia, a montagem se lança também ao simbólico e à interpretação de como tocamos essa odisseia prosaica: do jeito que dá, com tanta incerteza, com alegria, com tristeza, com alegria e tristeza misturadas...
Com direção de Enrique Diaz e roteiro de Daniel Maclvor, o espetáculo foi encenado neste último novembro no Itaú Cultural, em São Paulo. O título original, A Beautiful View, indica uma fantasia central para a história e sua relação com a morte. A adaptação brasileira traz à mente a construção típica "à primeira vista", ou seja, uma impressão só inicial, ou mesmo "amor à primeira vista", da paixão repentina e definitiva. Sem a crase, como que só aponta um momento no tempo - e dada a variação de pontos de vista sobre o outro, acaba-se com um gosto de que existem várias primeiras vistas, várias partidas. Mais ou menos como em um trecho do filme Dança Comigo?, em que um personagem diz: "É possível amar a mesma pessoa a vida inteira?" - e um outro responde: "Se fosse a mesma pessoa...".
As duas protagonistas se encontram pela primeira vez por conta de um hobbie em comum: em uma loja de produtos para acampamento. Conversa regulamentar com estranhos de um lado, extroversão de coração aberto do outro, as coisas param por aí. Outro dia, se veem em um show de rock - mais um gosto compartilhado - simpatia excessiva pra uma, surpresa gratificante pra outra, barulho alto ao redor, o diálogo anda como pode. Uma delas diz algo só por dizer, ou algo que era bacana de dizer a alguém, fala o que não queria, se enrosca e acaba tendo de procurar a outra noutra ocasião. Tropeçam numa intimidade e se amam sem saberem bem como chegaram até ali e sem saber lidar com o que decorreria disso. Aquela do regulamento e da reserva até teria ido em frente. Mas era imprevisto demais para aquela da extroversão, da simpatia e do coração aberto. Ela foge.
Mas a vida acontece - como a própria peça diz, e é interessante essa fórmula que explica tudo e não explica nada e quer dizer: é tudo tão fora do nosso controle! Do mesmo modo que o whatever works de Woody Allen... - a vida acontece, e depois de tantos anos, fatos e pessoas novas, até um casamento, se reencontram e se tornam amigas. Com aquele amor que não foi engasgado de leve, a cumplicidade que o substituiu. Aí então mais fatos e pessoas novas, mais com que se engasgar; e outros reencontros.
A interpretação das atrizes define bem a personalidade das personagens, construindo rápido algumas idiossincrasias, de maneira que sabemos "o jeito" delas, e nesse reconhecimento há espaço para gostar ou não gostar. Estamos também na situação da loja de camping, e o que é que pensamos dessas duas? Talvez seja por isso que haja duas formas de comunicação na economia própria da montagem - em uma, a narrativa, as anedotas, os acontecimentos que vão nos levando; em outra, as falas dirigidas à nós, como que discursos ou depoimentos. As diferenças de entendimento ficam então evidentes, mas apenas para a plateia. As distâncias entre uma e outra, e entre qualquer uma e seus desejos, são cada vez mais concretas e quiçá irreversíveis. E é em algo de mais sutil que podem se reunir novamente; não resolvendo os conflitos e as mágoas passadas, porém as deixando de lado de uma vez, sem pensar.
Nada é Suficiente
O título brasileiro tem a qualidade de indicar uma característica importante do espetáculo: a ideia da abundância da palavra, de como a aparência pode esconder uma multiplicidade. A frase, logo no início, algo como "isso pelo menos nos estabelece como duas mentirosas" - tem um quê de metalinguística, não só pondo em dúvida tudo o que vem depois, mas talvez se referindo à própria condição teatral. Outra frase que surge aí e que reaparece em diversos outros momentos é "nada é suficiente". Eis uma chance de autoteste aqui, leitor: o que você entende à primeira vista sobre essa proposição? A peça a ressignifica de duas maneiras: uma, no sentido que nada nos basta e nunca seremos satisfeitos; duas, que nada já está bom, que o vazio já nos preenche. Uma dialética entre extremos, ou nem tanto.
Além da abundância, a insuficiência da palavra. Como contei acima, uma personagem diz o que não queria - mas precisamente porque queria dizer alguma coisa, e o que ela disse no fim das contas era uma casca oca, que no entanto servia à intenção. Há também a frase que é dita, mas não era bem aquilo que se queria dizer, era quase... e, ainda outra, o silêncio que contém em si vários discursos represados. Podemos sentir esse gênero de ideia em canções como "Sinal Fechado", do Paulinho da Viola, "Girl Afraid", do The Smiths , "Onze Dias", do Los Hermanos, entre outras. Não exatamente uma incomunicabilidade, mas...
E o que vale para as palavras parece valer para as pessoas. Uma cena central de A Primeira Vista é a da execução de "Come as you are", do Nirvana, pela banda que as protagonistas formam: as Ukulaladies (porque tocam ukulelês). A música diz: Venha como você é, como você era, como eu quero que você seja, como amigo, como velho inimigo, como uma velha memória. As posições relativas são múltiplas, e os descompassos mútuos também.
Em outra cena, a de maior alcance simbólico, as duas amigas interagem com uma instalação. Trata-se de uma caixa de luz, um ambiente etéreo e fugaz, e quero entender, pelo contexto e dialogo nesse momento, que o que ele representa é o caráter circunstancial de uma relação. Naquele instante elas estavam dentro do mesmo espaço, rodeadas do mesmo fascínio. Cruzando essa linha de uma época e ambiente específicos, são duas pessoas assim tão distantes.
O Sentimento Como Urso
Ainda um último elemento simbólico que desejo destacar: o urso. Como em A Pantera, o animal representa por um lado um medo concreto e, por outro, delineia os riscos de todos os relacionamentos humanos tratados na história. Expressamente, o urso surge feito metáfora a representar os sentimentos, na medida de sua intensidade adormecida ou explosiva. Existe a vontade pontual, objetiva - quero comer, quero beber - e existe esse descontrole.
Nesse sentido, o diretor Enrique Diaz escreveu sobre a peça: "O afeto é terrível e violento, surpreendente, porque se não for para arriscar, aí não tem afeto, aí são só fortalezas e verdades paradas e sem vida. Pois Daniel [Maclvor] é assim, ele fala do afeto: ele fala, me parece, daquele lugar entre as pessoas em que elas percebem que não 'são' uma coisa em si, mas que 'são' naquilo que se mistura com os outros. E aí é um deus-nos-acuda porque a gente quer e não quer, a gente se mistura, mas quer o nosso cantinho bem arrumado, reconhecível. E não é assim que a banda do Daniel toca".
Em vários elementos constitutivos da peça, o que temos é o instável, incluído no estável. É isso, mesmo se resvalando no clichê: você está em paz, de repente vem um urso e desmonta a quietude. E a moral, se há uma moral, é de que talvez não haja valor em conter o ataque - quem sabe a vitória seja, sim, ceder a ele.
Duanne Ribeiro
São Paulo,
8/1/2013
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