COLUNAS
Quinta-feira,
31/1/2013
A Casa de Ramos
Elisa Andrade Buzzo
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ilustra: Renato Lima
É uma alta esplanada, ladeada por escarpa, que para os lados se esvoaça. Quase virgem de ocupação, tem algo de terra fresca, e a rua, ainda deserta, pedra a se revelar. Nessas tantas linhas que ladeiam o plano, estas infinitas linhas de montagem, capim que se corta, terra que se remexe e aterra, ponte que se alevanta, corte na montanha, aço e metal nas veias, a cidade vai se configurando como um organismo cujos fragmentos pudessem se reorganizar, e assim se instaurasse um dinamismo orgânico, uma inteligência alicerçada em vontades próprias.
O espaço é limpo de construções − estão elas no aguardo do momento de se esboçar, corporificar-se e tomar seu lugar: aquele que lhe é devido. Pecorro tal pedaço de chão destas cercanias remotas como quem descobre um traço que, determinado, se desmembra em capilares. De tal modo que os caminhos das ruas vão se desenhando, esta, aquela e ainda aquela outra serão as passagens entre os espaços de terreno, as delimitações naturais que o ser humano vai tratando de engendrar, chamando de patrimônio seu, como se uma cerca de madeira ou nobre grade de metal desenhado fosse um vinco, linha imaginária a delimitar desejos e propriedades.
Nesse tempo, a terra era mais próxima daquilo que ela era no início, contratuada e vasta, e de onde agora estamos se pode vislumbrar o recomeço. Da demolição se estraçalha o hoje, com mão dura a máquina despedaça histórias, mas chega-se mais perto da essência do terreno este desnudar-se forçado. Antes terra, aquele hospital volta a ser terra, no futuro, dela virá um grande e alto edifício, e antes que se eleve o gigante espelhado, muita gente virá à rua em comemoração. Enquanto isso, tem-se uma vaga ideia daquilo que era ainda antes do que viria a ser.
Divisão entre mundo terreno e celestial, o horizonte se desenha, e o homem trapaceia a paisagem em troca de caminhos otimizados, parca paisagem. De modo que, a escolha, para um arquiteto, é exata. Será ali, próximo à linha reta, um pouco abaixo desta bancada: o casarão, como um ente parado no tempo, testemunha a sucessão das pessoas e das existências na rua. Ele vem do tempo em que a escarpa era nua e funda, mantendo-se firme ao choque de um mundo colapsado, protegendo-se com seus aromas de mato e guarda-chuvas de roseiral de um vento constante que lhe incendeia.
Por ele já passaram carros e carroças. Pelo gradil, o leiteiro e o padeiro deveriam disputar seu espaço. Em seu interior resguardado de madeira e telhas, as histórias também se desenrolam nessa toada miraculosa: uma sucedendo-se à outra. De maneira que ele ata as pontas pelo tempo separadas. Abraçamos seu corrimão rijo, desgastamos os degraus da grande escadaria, espinha dorsal de gigante imóvel. Em cada andar batem corações, uma voz à outra vai se sobrepondo, imagens de gentes pairam como espantalhos. E a vida vai se tecendo frágil e bem-vinda, para nós, sólidos andarilhos em paisagem flutuante, a arquitetura das coisas nos restituindo uma porção de lugar no mundo.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
31/1/2013
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