COLUNAS
Terça-feira,
15/1/2002
Do inferno, com amor
Rafael Lima
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Por quais motivos alguém mata? Não os motivos sociais, mas as causas ocultas, a formação histórica, todo o intricado maquinário psicológico-social que transforma aquela pessoa à sua frente na fila do banco num assassino, num ser capaz de matar, instintivamente, mas com controle do que está fazendo? Segundo Coronel Kurtz de Apocalipse Now Rodox (o filme que não deixou nem barata viva), o que nos derrota não é o assassinato, mas o julgamento moral; com duas centenas de homens capazes de obedecer ordens e matar, valendo-se de seus instintos mais primitivos, quando necessário, seria possível ganhar a guerra do Vietnã. E como se forma cada uma dessas máquinas de matar? Por que elas causam essa incômoda mistura de horror e respeito entre seus pares, incapazes de agir assim? Se a morte é algo tão horrendo, por que os assassinos seriais são verdadeiros imãs de atenção, fonte de teledocumentários a teses acadêmicas? Por que, passados mais de cem anos, ainda sobrevive a história de Jack o Estripador? Alguns caminhos para as respostas estão em From Hell, de Alan Moore e Eddie Campbell.
Para Eddie Campbell já dediquei um texto inteiro, há quase um ano atrás. Para os que não conhecem Alan Moore, uma maneira interessante de apresentá-lo seria dizer que além da ocupação de escritor de histórias em quadrinhos - sim! Existe essa profissão! - Moore decidiu espantar a crise de meia idade tornando-se um mago: "Eu passei pelo embaraço ritual necessário de me declarar um mago em novembro de 1993, quase como me vacinando com uma forma de ruptura mental controlada e suave tal que espera-se que você adquira anticorpos para encarar a loucura maior quando ela chegar". No final da década de 80, com a proximidade do centenário da mais bárbara série de crimes jamais resolvida pela Scotland Yard, Moore sentiu-se tentado a escrever sobre o tema, dada a imensa quantidade de títulos sobre o assunto que invadiu as livrarias. Havia espaço em Taboo, uma antologia de terror "semestral que saía uma vez por ano", de seu amigo Stephen Bissete, e havia a imensa disposição de Eddie Campbell, que começava a ser lembrado por seu Bacchus, na Dark Horse. Criar e matar, era só começar.
From Hell começava meio timidamente, com um prólogo, em 1989, que não dava pala do catálogo telefônico em que se transformaria (550 páginas), 9 anos e 3 editoras depois. Pela primeira vez trabalhando com fatos reais, firmemente calcado nas dezenas de livros sobre o assunto, Alan Moore pinçou uma teoria a seguir (baseada principalmente no livro Jack the Ripper - The Final Solution, Stephen Knight, 1976) e, como de costume, enxertou nas brechas que sobravam símbolos mágicos, referências artísticas e algum sexo & violência - como se a história em si já não os apresentasse em dose suficiente... Sua hipótese é a de que a chacina das prostitutas de WhiteChapel foi uma queima de arquivo, encomendada por ninguém menos do que a rainha Vitoria herself, para deletar da História o casamento de seu neto Albert com uma balconista de doceria. Considerar essa possibilidade significa entender precisamente a pessoa que, como súdito leal de sua majestade, foi incumbido da tarefa de, se preciso, matar: Sir William Gull, então médico da família real e alto membro da maçonaria.
O segundo capítulo de From Hell, totalmente dedicado à sua formação familiar, psicológica, moral e intelectual, tenta esboçar uma personalidade capaz de eviscerar suas vítimas com a perícia de um cirurgião, capturá-las com a paciência de um caçador, e consumar seus crimes com a consciência espiritual de alguém que submete completamente a conseqüência dos atos ao domínio de suas intenções metafísicas. Assombroso - taí, estou sendo particularmente feliz na escolha de adjetivos nesse texto - e mais seria, não fosse igualmente espantosa a reação do público às notícias no jornal (medo e admiração abjeta), e a dos jornalistas, que no afã de terem uma boa história em mãos, acabam responsáveis pela invenção do personagem Jack o estripador. Não só a linhagem de assassinos seriais estava sendo iniciada; também a dos tablóides sensacionalistas ingleses nascia ali.
Um prodígio de narrativa, From Hell segue no estilo Alan Moore de evitar fios condutores. Para Eddie Campbell, "a palavra 'estrutura' totaliza o que Alan faz de melhor em todo o seu trabalho. Em From Hell, a idéia estrutural por trás de tudo é a arquitetura do tempo." O desenrolar da trama faz a imaginação do leitor oscilar entre o detalhe - os paralelepípedos em uma rua, o sotaque working class - e o global - as intenções por trás da realeza, a misoginia latente na alta sociedade inglesa - sem nunca perder a dinâmica dos acontecimentos. Espantoso é que ele tinha tudo planejado desde o começo: todas as fotos de referência do desenhista utilizadas para o epílogo foram tiradas em 1988! Campbell anota que quando Moore foi lhe chamar para o projeto, fez um resumo dos títulos de todos os capítulos, incluindo prólogo e epílogo, e que não se lembra de nenhuma mudança com o progresso do trabalho...
Uma das grandes bossas é que o painel de época desenhado nas entrelinhas parece interminável; descreve-se do cotidiano da realeza britânica a rotinas da polícia, mas até técnicas anticoncepcionais das prostitutas de WhiteChapel e rituais de iniciação maçom aparecem; cada aspecto que seja minimamente profundo é desdobrado em suas conseqüências e retratado com perícia. E mais uns dois ou três que não tinham nada a ver, mas dá-se um jeitinho de colocar ali, só ver como seria um encontro entre, digamos, o médico da corte William Gull e W.B. Yeats no British museum. Ou uma entrevista com John Merrick - o homem-elefante. Ou ainda, uma investigação com um índio da trupe de Buffalo Bill Cody: quando começou aquele papo de canibalismo de órgãos internos, por algum motivo ele foi apontado como suspeito...
O modus operandi para retratar essas maravilhas mereceria uma edição extra - Alan trabalha com full scripts, método em que o roteirista esmiuça, além das falas, cada pormenor que deseja em suas páginas. Por exemplo, quando Gull visita o British museum, são nove linhas para descrever apenas o terceiro quadrinho da página, entre as quais pode-se ler o seguinte: "Gull apenas permanece parado e olha-o partir, deuses colossais adormecidos e deidades com cabeça de chacal mantendo seu eterno silêncio e vigília sobre tudo ao redor. Ecos de meio hora atrás ainda sussurram e ressoam suavemente, um sibilo zumbi nos distantes cantos da sala. Talvez Gull coma uma uva" Painel seis tem uma descrição de 30 (!) linhas, terminando com "...o sorriso podia ser tomado por amigável, não fosse a superioridade fria, sardônica e inabalável sempre evidente nos olhos de Gull. Para ele, todos eram uma variação particularmente divertida do paramécio." Aos que preferem fugir gritando a ler esses textos, faz-se mister lembrar que estamos falando de instruções para ilustradores que, se acham muito difícil desenhar vozes ecoando em ouvidos de pedra, podem estar numa roubada. Num script de Alan nunca chove simplesmente, e algumas vezes a chuva "batucará em código Morse stacatto o texto de um melancólico romance russo".
É claro que quem abre qualquer uma das 4 partes da versão nacional que a Via Lettera lançou não vai ter a menor chance de encontrar isso, mas pode se deleitar com as vastas notas fornecidas ao fim da história - se a curiosidade não for a suficiente para ir lendo em paralelo e estragar o magnífico storytelling - ao descobrir, por exemplo, que Alexander, um certo pirralho no meio da turba popular que se teimava em enxergar sentidos esotéricos e significados ocultos num certo padrão das meras ocorrências criminais, era na verdade o jovem Aleister Crowley, antes da mudança de nome por questões de numerologia... Quem tem realmente pouca coisa para fazer pode inclusive conferir o diálogo travado via fax entre Dave Sim e Alan Moore, sobre a obra completa, mas não é preciso se importunar com isso. Primeiro, porque Eddie Campbell entendeu perfeitamente cada uma das descrições de Alan e as conjurou em imagens sombrias, sujas, tristes o retrato de uma Londres industrial. Lembro que certa vez uma amigo ilustrador comentou que à primeira vista parecia que ele desenhava todas as páginas em um dia só; de fato, seu traço soa apressado e indefinido à primeira olhada, mas repete aqui, para a arquitetura urbana londrina, o ambiente enfumaçado dos pubs e a sobriedade da era vitoriana a magia que já fez o leitor enxergar o azul do Mediterrâneo, o branco das vilas gregas e o dourado dos corpos expostos ao sol nos mesmos rabiscos preto e branco impressos em papel vagabundo de Doing the Islands with Bacchus. Encoraja-se os mais chatos a adquirirem a versão original, que Eddie Campbell teve a pachorra de produzir, ou a versão italiana, únicas que foram fotografadas diretamente dos originais, ao contrário, por exemplo, da brasileira, que digitalizou as imagens, à custa dos detalhes que nenhum scanner consegue capturar - é só comparar as figuras desta homepage com as impressas. O que não vai impedir de te transportar de uma tarde calorenta de verão para a Londres de 2 séculos atras. E ficar apavorado. Tenha medo, tenha muito medo.
From Hell ::: edição original da Eddie Campbell Comics (softcover)
From Hell ::: edição de luxo da Grafitti Design (hardcover)
Do Inferno ::: edição nacional da Via Lettera (em 4 partes)
Já o filme...
Algum tempo depois da primeira impressão, Eddie Campbell contou em sua revista que os direitos para uma adaptação cinematográfica da graphic novel tinham sido vendidos para Hollywood. Alan Moore fez a única declaração sensata que poderia: não queria assistir às filmagens, não estava preocupado com o resultado final porque sabia que o filme era outra coisa, e não teria o menor controle sobre aquilo.
O inspetor Abberline, figura central, responsável pela condução do caso, oficial de meia idade, circunspecto e compenetrado, tentando colocar um pouco de ordem na baderna de crimes bárbaros, histeria coletiva e bruarrá da imprensa na qual os incidentes de WhiteChapel haviam se transformado; cujos únicos momentos de relaxamento são conversas amistosas (apenas isso) com a prostituta Emma em um pub, é interpretado por Johnny Deep, que deve ter composto um personagem semelhante ao Ichabode Crane de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. Deep teria sugerido fazer de Abberline um viciado em ópio, e eis que vemos nosso circunspecto inspetor em sessões de delírio regadas a absinto e ópio na tela...
Heather Graham encarna Marie Kelley, a prostituta que tem a idéia de chantagear alguém da corte; como era de se esperar, aglutinaram seu personagem a Emma, corrompendo definitivamente o roteiro original.
Isso tudo para não mencionar que seria impossível transpor o acontecido de 550 páginas em, que seja, 2h30 de filme; que a direção de arte teria de se superar para retratar uma Londres vitoriana convincente; que a violência e a crueza de inúmeras cenas da Hq teriam que ser cortadas (o capítulo 10 inteiro iria embora) a fim de que a censura não comprometesse o aporte de público, enfim, concessões que acabariam fazendo do filme algo completamente diferente da graphic novel, como previu corretamente Moore: modernoso, escandaloso, espetacular - e ruim.
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
15/1/2002
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