COLUNAS
Sexta-feira,
8/3/2013
Se ele não me lê
Ana Elisa Ribeiro
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Um escritor quer para si um outro escritor. Essa verdade é refreada pela minha escassa vontade de discutir sempre a mesma coisa no âmbito da casa, do lar, do doméstico. Mas, vez ou outra, me faz falta aquele ouvido absoluto de quem "entende do riscado", para me dizer das vírgulas mal-postas ou dos sentidos equivocados disto e daquilo. Mas aí me toco: o escritor quer para si ele mesmo? Um outro escritor que com ele se pareça e que o possa ouvir como se fosse uma "caixa de retorno"?
Há algum tempo, escrevi, aqui e ali, sobre a conquista de alguém pela escrita, o texto como "sereia", movimento de sedução que pode mover alguém na direção de outrem, impiedosamente. Ricardo Piglia, em seu livro O último leitor, trata do tema citando situações de Franz Kafka.
Qual escritor, será, não se identifica com a situação de escrever na tentativa de seduzir? As cartas (ou os e-mails) poderosas lançadas de lado a lado não nos soam como flechas? Um bilhete, que seja, pode almejar um século de paixão; um post it na tela do computador; um SMS no celular; um recado no espelho, com batom; um guardanapo levemente manchado, escrito com a caneta do garçom; um livro comprado com o intento de dizer, mais do que o de ser lido; um livro que eu gostaria de ter escrito. Quanta vez ganhei livro-mensagem, carta de apreço, alinhavos de alguém que queria um retorno fincado no coração (selvagem). Nem sempre aconteceu. Quase nunca, eu diria. Mas, como já disse antes, vez ou outra é o texto que me vence, antes do autor. E acontece quase sempre.
Mas e quem não me lê? Num dia desses, num passado muito recente, troquei mensagens com um amigo pelo chat do Facebook e estávamos tratando de uns reveses da vida, tombos e mais do que chegadas, partidas, quando ele me disse: "Ela não lê o que eu escrevo!". A exclamação era, então, muito mais que uma reclamação, era um argumento muito forte rumo ao não, rumo à conclusão de que "essa não é a pessoa certa".
"Ela não me lê". Onde se mostra mais o escritor? Em seu texto? Talvez não. Somente os muito parvos (literariamente, digo) são capazes de ver mesmo a pessoa no texto literário. Ou será que ela está escondida ali? Não creio. Já cansei de dizer: "O que aconteceu depende da narrativa". A narrativa é um perigo. A certa distância do fato, é só ela que pode construir as coisas ou reconstruí-las ou editá-las ou menti-las ou esquecê-las. Não é um perigo?
Se ela não te lê, o que ela quer? Você não a conquista pela escrita (então sua melhor arma não a atinge); ou ela sabe ofendê-lo em seu maior brio - sua escrita; ou ela o ignora porque sabe que é aí que o calo mais lhe dói; ou ela simplesmente não quer saber ao certo quem você é; ou ela prefere a versão em carne e osso, já que pode lhe parecer chatíssima a versão que você se dá pelo texto. Ou o que mais? Estou errada em tudo isso, eu sei.
Não é raro que o escritor tenha uma voz no texto; um tom, um ritmo, um jeito, um "estilo", sem polêmicas maiores, por favor. É até comum que o leitor escute o narrador (ou eu lírico) de um modo e sinta um ente naquele texto que lê... e essa voz não seja a mesma que escuta quando o escritor, em pessoa, dá uma entrevista ou um depoimento. E quem são esses? Fundem-se?
E se ela não te lê, meu caro, o jeito é desistir? Talvez. Ela não o visita onde mais você se sustenta, vive e está. Ela não se deleita com seu maior prazer. Ela não o deseja aí nesse universo onde você vive mais e melhor do que do outro lado. E então? O que você ainda está fazendo ao lado dela?
Eu, de cá, acho que perdi a imensa vontade de ter ao meu lado alguém que me lê em tudo o que escrevo. Somente mesmo faço questão de uma seleção muito mínima. Não precisa me ler, meu caro: vamos conversar, interagir de outras formas. Se eu precisar de leitores, ainda mais de especialistas, recorro a uns amigos e aos profissionais. De você quero outros olhos. Mas por quê? Porque não sei se é nos textos que quero que me descubram; e talvez porque nos meus textos eu jamais esteja inteira; ou jamais esteja de verdade; ou jamais tenha me encontrado; ou seja muito falsa. Faço questão de abrir fendas entre o que sou e o que escrevo.
Veja: ocorre que faço o outro sofrer com o que escrevo, percebe? Certa vez, ele me leu e sentiu imensos ciúmes. E, ao mesmo tempo, sentiu-se ridículo por sentir tanto ciúme de um texto, de um personagem. Mas o que mais lhe doeu foi a dúvida: será que é mesmo ela? E qualquer coisa que eu dissesse não o esclareceria. Para prevenir rugas desse tipo de preocupação, ele deliberou, um dia: "Não vou mais ler você nos textos". E não leu mais. Não leu porque evitou indiretas, carapuças, alfinetadas, mentiras e verdades. Não leu porque não precisava da narradora, mas da mulher. Não leu porque não queria acreditar naquela voz tão instável. Não leu porque não transitava bem entre a literatura e a vida, que podia ser melhor sem a literatura.
Eu não o julguei e não insisti. Eu me senti livre, sabia? Eu me senti uma narradora muito mais viável. Eu não tive mais vontades de autocensura quando escrevia isto ou aquilo. Eu me senti uma escritora bem mais invenção do que relato.
Mas se te magoa, amigo, vá lá. Vá saber por que ela não te lê. Eu vivi uma relação incerta, por anos, com um outro escritor (entre outros) e nossa avaliação recíproca não nos salvou do fracasso. No dia em que não o li mais, desligamo-nos. Foi assim como dizer: "Não te admiro" ou "não quero isso que você tanto ama". E a ofensa foi maior que tudo. E não é verdade que um escritor entende o outro. Não é verdade que um escritor desculpe melhor o outro.
Que um outro, mais recente, não me leia é a liberdade de ser quantas mulheres-narradoras eu quiser. E é como se ele ignorasse, alegremente, uma delas que lhe soa muito infiel. Ou muito popular. Esta aqui, sem teclas ou canetas sob os dedos, parece-lhe mais tangível, mais verdadeira e mais sua.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
8/3/2013
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