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Quarta-feira,
13/3/2013
Sultão & Bonifácio, parte II
Guilherme Pontes Coelho
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(Parte I)
Sultão é o gato de estimação de Brás Cubas. Ele leva o dono no dorso primeiro à origem e depois ao final dos séculos, galopando à velocidade da luz. Não é exatamente Sultão a cavalgadura, é um hipopótamo. É Sultão transfigurado em hipopótamo, porque a tal viagem é um delírio do acamado Cubas, doente e moribundo. Esta é a única aparição do felino no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Sempre me pergunto por que Sultão, sendo bicho de estimação, não aparece em nenhum outro episódio das memórias do defunto autor.
Para tentar entender, ou pelo menos explicitar, ou mesmo escancarar esta ausência, vejamos este outro gato literário, de outro herói literário.
Ele se chamava Bonifácio. Teve outros apelidos, carimbados nele de acordo com as fases vividas naturalmente por um gato burguês e bem nutrido. Bonifácio era um gato angorá, uma raça doméstica nascida na Turquia, obviamente na capital Ancara. Uma raça bonita, de pelagem branca, com alta incidência de heterocromia (olhos de cores diferentes). Bonifácio era português, nascido na região norte de Portugal, mais especificamente em Santa Olávia, uma quinta (fictícia, se não me engano) do seu proprietário às margens do Douro. Aqui está a primeira menção à sua pessoa:
Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de S. Bernardo) o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: depois, ao chegar à idade do amor e da caça, fora-lhe dado o apelido mais cavalheiresco de D. Bonifacio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades eclesiásticas, e era o Reverendo Bonifácio...
O Afonso mencionado é ninguém menos que um dos maiores personagens já criados pela literatura universal, o colossal Afonso da Maia, patriarca da família Maia, do romance Os Maias, de Eça de Queiroz, publicado em 1888. Ao contrário do Sultão de Cubas, o Bonifácio de Afonso é uma das dramatis personae do romance. Se, por algum acaso, um copidesque perverso alterasse a redação do romance de Machado de Assis, Sultão poderia não fazer falta. A letra original diz:
"(...) o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel..."
Mas poderia dizer: "Era efetivamente um gato, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...", e não haveria mais Sultão, nem falha alguma no romance. O mesmo não se poderia fazer com Bonifácio. Em termos de importância e de exposição, a pessoa de Sultão é menor que, digamos, às de Rosenkrantz e Guildenstern, em Hamlet, bem menor; mas a infeliz dupla dinamarquesa, por sua vez, não é nada, nos mesmos termos, perto de Bonifácio.
Eu não me aborreço com Machado de Assis por ter usado Sultão como artifício para fechar o delírio do qual seu personagem estava saindo. O hipopótamo é um animal visualmente histriônico e grotesco, perfeito para servir de montaria a um Cubas delirante, mas a transfiguração do hipopótamo num gato, que brincava com uma prosaica bolinha de papel, é uma manobra de continuísmo literário. Só que eu não me aborreço com Machado de Assis por isso. O que me deixa intrigado é Brás Cubas ter ocultado sua relação com o gato. Por que isso?
Voltemos ao contraexemplo.
A primeira aparição de Bonifácio no romance Os Maias é quando conhecemos o monumental Afonso da Maia, nos pés de quem Bonifácio costumava ficar enrolado, enquanto o Afonso lia, ao ar livre, gente como Voltaire e Rousseau. Bonifácio é o "fiel companheiro" do viúvo Afonso, e é como se um só tivesse ao outro. Pedro da Maia, o filho, está morto. Carlos Eduardo, o neto, estudando e curtindo a vida em Lisboa, ao lado de João da Ega. Vilaça, o procurador dos Maias (faz-tudo), é um empregado, que vai a todo canto. O gato faz parte de Santa Olávia, a quinta-refúgio da família e fará parte do Ramalhete, o trágico e "sombrio casarão de paredes severas" que "os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875".
Havia, no Ramalhete, vários eventos, dos quais o gato fazia parte. Mr. Theodore é o chef francês do Ramalhete. Afonso era exigente com as refeições, e os almoços em família eram eventos demorados e requintados, dos quais o gato participava, à sua maneira:
O reverendo Bonifácio, que desde que se tornara dignitário da Igreja comia com os senhores, lá estava já, majestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, à sombra de algum grande ramo. Era ali, no aroma das rosas, que o venerável gato gostava de lamber, com o seu vagar estúpido, as sopas de leite servidas num covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo ele uma bola entufada de pelo branco malhado de ouro, gozava de leve uma sesta macia.
A propósito das sestas, Bonifácio era como um mestre na arte:
"Numa facha oblíqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifácio, enorme e fofo, dormia de leve a sua sesta."
Outra cena:
"Aí [no escritório de Afonso] ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifácio se deixava torrar, enrolado sobre a pele de urso."
Mais outra:
"...as peles de urso onde o Reverendo Bonifácio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gozo."
Que vida este gato teve!
(Parte III)
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
13/3/2013
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