COLUNAS
Segunda-feira,
4/3/2013
Journey
André Graciotti
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Se as tentativas do videogame em ser algo mais - transcendental, filosófico e profundo - do que simples entretenimento tem conseguido notáveis resultados nos últimos anos, é com Journey que ele atinge sua sublimação. Poucas coisas - e me refiro à cultura pop como um todo - conseguem ser tão tocantes e tematicamente complexas quanto Journey é.
Os dois jogos precedentes do estúdio independente thatgamecompany, flOw e flOwer, já quebraram paradigmas do se espera de um game e mostraram, com excelência invejável aos grandes estúdios, como expandir a jogabilidade como elemento essencial à imersão e a emoções diversas, mas Journey é a sua grande obra-prima, indo muito além em conceitos que já exploravam e é provavelmente uma das coisas mais emocionantes e - sim, vou arriscar sem medo e em bold - artísticas já feitas num videogame.
Assim como nos games anteriores, você deve descobrir sozinho como jogar e o que fazer, adentrando num ambiente desconhecido e sem entender muito bem quem você é e qual seu objetivo (a única coisa inteligível logo de imediato é a sugestão de que você deve retornar a uma montanha com um feixe de luz no horizonte). É preciso se aventurar aos poucos nos controles, nos movimentos e nos vastos e misteriosos ambientes pra ir "entrando" no clima que Journey demanda. Mais do que qualquer outro jogo, Journey é todo pensado para que você SINTA a experiência de estar naquele universo e não apenas que almeje completar um objetivo.
Até tem lá momentos de games mais "tradicionais", como obstáculos a serem superados, pequenos puzzles, desafios progressivos e bichos gigantes que oferecem ameaça. Mas são apenas detalhes num jogo com tantos grandes momentos (a fase em que deslizamos pelo deserto em contraluz é de suspirar fundo de tão linda e intensa) e que tem como grande atrativo oferecer um universo tão rico e complexo através de uma jogabilidade tão simples.
Há até mesmo um dos multiplayers (jogo de múltiplos jogadores) mais interessantes já criados, já que não se trata de uma competição (enfim!), mas de um co-op (jogo cooperativo) bem original. Um outro jogador pode aparecer sem aviso, sem huds (heads-up display: a exibição de características e status na tela) e sem nickname para ser seu companheiro na viagem. Vocês podem recarregar o tempo de flutuação um do outro e ainda se comunicar não-verbalmente - com apenas um botão, emite-se um som que parece um canto. Parece estranho, mas funciona lindamente. Constrói-se um senso de companheirismo emocionante. Tanto que os nicknames de quem lhe acompanhou na "jornada" só aparecem nos créditos finais, e o senso de conquista conjunta cria um curioso laço entre os participantes (eu abri um sorriso quando me dei conta de que sentia uma certa proximidade com aquelas pessoas, como se tivessem dividido algo muito especial comigo). O momento em que um outro viajante entra na tela e, sem perceber, vocês já estão se comunicando e se ajudando, é uma sensação inigualável.
A tal jornada é curta, dá pra terminá-lo numa tacada só, por volta de duas horas de jogo, mas isso não minimiza a experiência. A vastidão do ambiente e o senso de solidão (mesmo quando acompanhado por outro jogador) potencializados pelo visual e pela trilha melancólica, lembram bastante o clima de The Shadow of the Colossus. Mas enquanto aquele tinha seus clímaxes nas batalhas épicas, aqui o épico vem em pequenos momentos, como quando chegamos num novo e deslumbrante ambiente e até a câmera muda de posição; quando deslizamos pelas dunas de areia em companhia de seres que voam ao seu lado; quando nos deparamos com outro viajante, ou nos breves e misteriosos encontros com "deuses".
Além de ser uma deliciosa experiência na jogabilidade, Journey ainda tem uma pegada mística-religiosa fascinante. Os checkpoints são em altares que guardam desenhos pictográficos anciãos, e a almejada montanha final é como a chegada no paraíso para celebração do ciclo da vida. Sem contar a linda sacada de que todos os ambientes são predominantemente áridos, mas todo tipo de "vida" que você encontra faz referência à vida marinha: os tapetes enterrados na areia são como algas e corais e há alguns seres voadores ao longo do caminho que se movimentam como peixes. E a conquista da chegada ao "paraíso" expande ainda mais a sensação de êxtase dos sentidos ao "libertar" não só o personagem, mas também a jogabilidade, contrastando brilhantemente com a limitação de movimentos do começo da jornada no deserto (remetendo à ideia hinduísta-budista de carma e de evolução espiritual. Sim, é um game conceitual e metafísico a esse ponto).
Se flOw era sobre a evolução de seres microscópicos e flOwer sobre a resistência da natureza, "Journey" sobe mais um nível e trata da existência e do processo de compreensão da vida. Não é um game apenas para percorrer nem apenas apreciar, mas para ser vivenciado. Trata-se de uma das experiências mais emocionantes e intensas que já tive com - ou sem - um joystick nas mãos. Não é exagero nenhum dizer que as emoções aqui não perdem em nada para uma experiência espiritual. Journey é mesmo divino.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Revisto.
André Graciotti
São Paulo,
4/3/2013
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